Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, abril 16, 2009

Casa da sogra Dora Kramer




O Estado de S. Paulo - 16/04/2009
 

 Nos últimos dois meses, tentou-se de tudo no Congresso para abafar os efeitos da abertura (ainda parcial) da caixa-preta onde se acondicionam quantidades amazônicas de abusos no uso do dinheiro público.


Firmou-se um pacto de não-agressão entre PT e PMDB, cuja briga em torno da presidência do Senado denotou as primeiras bombas; ressuscitou-se o velho truque da contratação de auditoria externa para fazer um diagnóstico da situação e dar um jeito na balbúrdia; anunciaram-se exonerações de diretores e extinções de diretorias; procurou-se dar às malfeitorias um caráter de legalidade interna; restringiu-se o acesso à informação; disseminou-se a teoria da conspiração "das elites" contra a democracia representativa.

Por último, tentou-se recorrer ao estratagema da indiferença, ao molde do "nem te ligo" conferido às acusações do senador Jarbas Vasconcelos pela direção do PMDB, partido apontado como majoritariamente adepto da corrupção e do fisiologismo, agremiação dos presidentes da Câmara, Michel Temer, e do Senado, José Sarney.

Todos os esforços foram em vão, pois diariamente continuam a ser expostas novas e cada vez mais bizarras maneiras de desacato ao decoro.

O que dizer da viagem ao exterior proporcionada à sogra do governador do Ceará, Cid Gomes, diante da contratação da sogra do assessor de imprensa do senador Renan Calheiros como fantasma de gabinete ou das passagens aéreas cedidas à (hoje ex) sogra do deputado Fábio Faria? E a contratação de empregados domésticos com verbas públicas é algo aceitável em gente com perfeitas condições financeiras de arcar com esse e outro tipo de despesa?

Do mesmo jeito que o senador Tasso Jereissati tem dinheiro para pagar aluguel de jatinhos particulares, pois é rico e, de acordo com o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, "paga para exercer o mandato", o deputado Fábio Faria é rico.

E mesmo que fosse pobre não precisaria expor ao escândalo a então namorada, uma artista cujos recursos são produto de trabalho certo e bem sabido. O problema é que o deputado e todos os outros colegas não veem escândalo na apropriação de bens em benefício de outrem.

Chegam ao Congresso convictos de que com a delegação do voto receberam também o direito de pintar e bordar impunemente. Muitos ingressam na carreira política com o objetivo preciso de ter acesso livre a privilégios.

Quando são chamados aos costumes, estranham, não raro se "decepcionam" com a política.

Se Fábio Faria queria ser gentil com a moça e a mãe da moça, comprasse de seu bolso as passagens. Certamente o faria como todos os cidadãos comuns e empresas privadas: escolhendo os bilhetes entre as diversas tarifas mais baratas que o preço "cheio" cobrado pelas companhias ao Congresso.

Qualquer pessoa sabe a diferença entre uma tarifa "cheia", que chega a custar mais de R$ 1.000 entre São Paulo e Brasília, por exemplo, mas não passa de R$ 300 ou R$ 400 nas promoções para o mesmo trecho.

Por isso, com apenas uma delas os parlamentares podem desdobrar em dois ou mais bilhetes para distribuir à tripa forra.

Ciente da situação, o que diz o presidente da Câmara, mesmo depois de dois meses sob intenso bombardeio? Que quem decide o que fazer com as passagens é o deputado. "A cota é sua. Se achar legal, justifique. Se não é adequado, trate de devolver."

É de boquiabrir. Primeiro, porque a "cota" não é propriedade privada do deputado Fábio Farias nem de ninguém em particular. Faz parte de uma parcela do Orçamento, cujos recursos são provenientes dos bolsos de todos os brasileiros. Ou pelo menos daqueles que pagam impostos sobre seus ganhos sem o privilégio de contar com verbas indenizatórias livres da cobrança de tributos.

Em segundo lugar, espanta a negligência do presidente da Câmara com uma decisão anunciada por ele na semana anterior, quando, entre outras medidas, a Mesa Diretora disse ter restringido ao parlamentar o uso das passagens aéreas.

Ah, a regra não é retroativa? Pois então que fosse assim instituída para que a decisão não tivesse sabor de artifício.

A única tentativa que não se fez no Congresso nos últimos tempos foi a de corrigir rápida, profunda e rigorosamente as distorções denunciadas. Tampouco se procurou descobrir outras ainda não divulgadas de forma a se antecipar às denúncias e demonstrar genuíno empenho em prol do acerto.

O primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes, reconhece que há morosidade, mas garante que as medidas de correção serão tomadas "não tão rápido como gostaríamos, mas de maneira segura".

O senador fica devendo uma tradução para o português claro. Sem o quê, terá dito uma frase oca a ser entendida como intenção de protelar providências.

Isso pode até interessar de imediato aos parlamentares beneficiários dos privilégios. Mas quem paga por eles consolida a impressão de que o Congresso é um território de vale-tudo onde só uma regra é cláusula pétrea: cada um por si e todos em defesa da causa própria.

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