O Brasil prepara-se para receber o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. A primeira visita de um presidente iraniano, prevista para maio, poderia ser vista como mais um passo na conquista de novos mercados e até no aumento de influência brasileira numa região em que o País prima pela ausência. Cabe, no entanto, indagar por que um país democrático, que vive sob a égide do Estado de Direito, deveria aproximar-se da odiosa ditadura teocrática que governa aquele fabuloso país, berço da cultura persa.
Para estreitar os laços geopolíticos do Brasil com o Sul, segundo preceitos de um realismo calcado apenas nos interesses egoístas dos Estados e na predominância das esferas de influência? Nesse caso, a razão de Estado, lógica desenvolvida pelos cardeais Richelieu e Mazarin, manda o País se calar quando o Irã consumar seu programa nuclear. Ou nossa diplomacia buscaria só aproximar os dois povos, explorando benefícios mútuos? Nessa hipótese mais panglossiana (do dr. Pangloss, personagem de Cândido, o Otimista, de Voltaire), estaremos no melhor dos mundos. Mas, como suspeitaria o pensador iluminista, essa aproximação, no fim das contas, serviria só para aumentar o reconhecimento internacional de um regime que pisoteia direitos humanos, promove o terrorismo internacional e ameaça a estabilidade do Oriente Médio com o projeto de desenvolver armas nucleares.
Trilhamos um caminho oposto ao do Irã dos aiatolás. Em duas décadas de redemocratização, não só reconquistamos os direitos de cidadania suspensos pela ditadura militar - como a liberdade de expressão e o habeas corpus - como avançamos na construção de novos direitos, o que nos pôs no caminho de nos tornarmos uma República mais justa. Mas ainda somos uma nação desigual, onde a pobreza priva milhões de cidadãos de uma vida digna. Também não conseguimos acabar com a violência, policial ou não, que vitima principalmente "pretos, pobres e mulatos", para citar a canção de Caetano Veloso. Contudo o Brasil hoje reconhece suas mazelas, como a desigualdade social e a dívida para com a população negra, e se esforça para combatê-las. A criação de políticas públicas afirmativas busca diminuir essa desigualdade, oriunda da escravidão. E a universalização da educação laica abre horizontes para a formação de uma população mais livre e mais preparada para os desafios atuais do mundo globalizado.
Que contraste com o regime fundamentalista e retrógrado do Irã! Um regime que não só persegue minorias religiosas como os bahais, como também estimula o assassinato de muçulmanos que se atrevem a mudar de religião. Quanta diferença entre nossa tradição política conciliadora e um governo cujo presidente é descaradamente antissemita, que minimizou a barbárie nazista ao declarar que o Holocausto não existiu e que o Estado de Israel deveria simplesmente ser riscado do mapa!
Quando liderou a revolução contra a odiosa ditadura do xá Reza Pahlevi, em 1979, o aiatolá Khomeini prometeu uma era de liberdade para os iranianos. Isso parecia possível; afinal, uma insofismável revolta popular enfrentou a brutal repressão da Savak, a polícia política iraniana, e pôs fim a um regime que não passava de marionete dos EUA desde 1953, quando a CIA derrubou o então primeiro-ministro nacionalista Mossadegh. Por isso, a queda do xá foi saudada em quase todo o mundo como uma revolução genuína. Para parte da intelligentsia europeia, a revolução islâmica resgatava a dimensão libertadora das insurreições populares, a "tomada dos céus de assalto". O filósofo francês Michel Foucault, o desconstrutor do pensamento ocidental, fez um panegírico à revolução xiita intitulado Elogio à Rebelião. Para ele, a revolução dos aiatolás representava uma nova forma de "dimensão espiritual na política" que se contrapunha ao racionalismo positivista da modernidade ocidental. Mas, quando a Guarda Revolucionária do novo regime começou a fuzilar comunistas e homossexuais em nome da pureza de princípios, ficou claro que a razão não estava com Foucault, mas com Albert Camus, para quem "todas as revoluções traíram fundamentalmente o sentido da revolta".
Além de liquidar setores laicos que tinham lutado contra a ditadura, a teocracia islâmica fez o Irã voltar ao século 9º: impôs a submissão às mulheres, permitiu a invasão da embaixada americana em Teerã e apoiou movimentos terroristas no exterior. O Irã tentou exportar seu obscurantismo quando Khomeini decretou uma fatwa (pena de morte) contra o escritor britânico Salman Rushdie, acusado de "blasfêmia" contra o Islã; 30 anos depois da ascensão da revolução islâmica, a organização de direitos humanos Anistia Internacional afirma que a situação mudou muito pouco. Persistem as sistemáticas violações de direitos humanos, como prisões arbitrárias, tortura institucionalizada, uso indiscriminado da pena de morte - o país é o segundo em execuções, depois da China -, perseguições de minorias religiosas, violação dos direitos das mulheres e severas restrições à liberdade de expressão. Para piorar, os dirigentes iranianos continuam apoiando e financiando organizações terroristas - como no Líbano e em Gaza - e estão firmemente empenhados em fabricar a bomba atômica, apesar do disfarce civil de seu programa nuclear. O que temos a aprender com esse regime?
O Brasil e os países democráticos emergentes não têm por que estreitar relações com governos autoritários como o do Irã, cujo discurso "anti-imperialista" só serve para encobrir o ódio à ideia de democracia como valor universal. Não somos uma superpotência como os EUA, que tem de dispor de um arsenal diplomático, além do dispositivo de dissuasão militar, para manter o equilíbrio numa região instável. E, acima de tudo, não podemos, em nome da crítica à política de um Estado soberano e democrático (Israel), adular um dirigente protofascista do naipe de Ahmadinejad. O Brasil deveria aproximar-se das lideranças responsáveis do Oriente Médio, jamais de tiranetes demagógicos dispostos a ver o circo (o mundo) pegar fogo.
Entrevista:O Estado inteligente
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