Em nome do dever patriótico, empresário chinês driblou
os controles da Christie’s, arrematou duas peças saqueadas
no século XIX e ainda tripudiou: não vai pagar
Fotos Alain Nogues-Corbis-Latin Stock eChina Fotos-Getty Images |
A CASA CAIU Cai Mingchao fez o lance falso e diz, mas ninguém acredita, que agiu sozinho |
Por qualquer critério estético que se use, e em especial se comparadas às fabulosas obras produzidas em 5.000 anos de história chinesa, as duas esculturas abaixo são, no mínimo, esquisitas. O coelho tem orelhas desproporcionais e traços estranhamente antropomórficos; o rato parece uma anta. Para a China, no entanto, as esculturas de bronze viraram questão de honra nacional pelo valor simbólico, pois foram saqueadas no século XIX, num período histórico que parece até fictício de tão absurdo – era o tempo das guerras do Ópio, quando a Inglaterra queria forçar a venda da droga vinda dos campos de papoula da Índia colonial aos chineses e as demais potências ocidentais queriam forçar a venda de qualquer outra coisa. O coelho e o rato faziam parte de uma fonte com os doze animais do horóscopo chinês, uma das incontáveis peças decorativas do prodigioso Palácio de Verão dos imperadores da época, saqueado e incendiado em 1860 por tropas francesas e inglesas em represália pela tortura e morte de vinte emissários que negociavam uma trégua, num dos maiores casos de choque cultural da história recente – os chineses não entendiam o conceito de imunidade e os invasores estrangeiros entendiam, mas usaram assim mesmo, o critério da força desproporcional, em represália. Como inúmeras obras saqueadas antes dos tratados internacionais recentes que regem o direito das nações ao próprio patrimônio, o coelho e o rato acabaram legitimados e incorporados à coleção do costureiro francês Yves Saint Laurent, morto no ano passado, e seu sócio e companheiro, Pierre Bergé. Em nome do amor de sua vida e da benemerência, Bergé levou a leilão na Christie’s de Paris 700 peças da coleção. Desafiando a crise, o leilão amealhou impressionantes 478,8 milhões de dólares. Exceto pelas esculturas chinesas: os lances vencedores de 20 milhões de dólares, soube-se na semana passada, foram falsos.
ANO DA ZEBRA O rato e o coelho: longe de casa |
Quem os fez foi o empresário chinês Cai Mingchao, que considerou seu dever patriótico melar a venda. Para quem conhece minimamente a China, parece próxima de zero a probabilidade de que Cai tenha agido de moto próprio. Mas como a tarimbada Christie’s foi cair nessa? Cai foi um, digamos, instrumento adequado. Ele é do ramo do comércio de arte, tem uma casa de leilões na China e há três anos pagou 15 milhões de dólares por um Buda de bronze da dinastia Ming. A quem dá o lance mais alto, a Christie’s pede ficha bancária e de crédito, e a de Cai passou no crivo. Como ele não pagou, e ainda tripudiou, o mais provável é que as esculturas voltem para Bergé. O governo chinês, que fez uma grande campanha contra o leilão das esculturas, sustenta oficialmente que não tem nada com a história, engendrada por Cai em conjunto com Niu Xianfeng, diretor do Programa de Recuperação de Relíquias Culturais Perdidas, uma organização não-governamental (hummmm). A tentativa de recuperar o patrimônio perdido é legítima e louvável, especialmente na China, onde tesouros incontáveis foram destruídos pelos próprios chineses, durante o maoísmo. Cinco das doze esculturas originais – tigre, boi, macaco, porco e cavalo – foram adquiridas discretamente por estatais e empresários chineses e doadas a museus. Agora, tudo indica, a política é fazer barulho. Nesse campo, pelo menos, o leilão deu zebra.