FHC: Um estadista no Manhattan Connection
Vitor Hugo Soares
Para começar 2014 com os dois pés, um pensamento de Ulysses Guimarães, mestre da política e guerreiro imortal das lutas democráticas, contra a ditadura e em defesa de liberdade plena de expressão no Brasil. O texto, porém, é sobre a entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, domingo passado, no programa Manhattan Connection, do canal privado de televisão Globo News.
A citação é do IV Mandamento do Decálogo do Estadista, publicado por escolha, obra e graça de dona Mora, a mulher corajosa e firme que acompanhou Ulysses até o fundo do mar na viagem derradeira. Está no livro "Rompendo o Cerco", de 1978.
Ganhei um exemplar, com dedicatória do autor, quando ainda chefiava a redação da sucursal do Jornal do Brasil na Bahia, depois da sua heróica resistência na famosa manifestação de rua na "noite dos cachorros". A reprimida manifestação comemorativa do 13 de Maio em Salvador, chamada de A Roma Negra.
"Eu estava lá, eu vi", como escreve Sebastião Nery na brilhante apresentação do livro.
O jornalista e amigo Ricardo Noblat, então na Veja, estava ao meu lado. Costumo repetir, ao escrever ou falar sobre o caso: nós dois, caneta e papel nas mãos, molhados de suor e sentados na calçada da praça histórica do Campo Grande, parecíamos aqueles bêbados das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, quando Ulysses Guimarães começou o seu histórico discurso sobre o episódio, feito da sacada do prédio da antigas sede baiana do MDB.
A refrega cessara, mas os cães policiais açulados contra os manifestantes ladravam ainda, para amedrontar os que restaram na praça. Sinto orgulho, ao recordar neste limiar de 2014, das fotos feitas no Congresso, em Brasília, no começo da semana seguinte aos "incidentes na Bahia".
A página do JB levantada, nas mãos de parlamentares, com imagens e textos informativos sobre "a repressão canina da ditadura" (a expressão é do Senhor Diretas), relatando e denunciando a noite de repressão em Salvador. Mas igualmente de audácia e coragem.
Desguiei-me um pouco (ou não?) do foco inicial, mas reproduzo a seguir o mandamento do decálogo de Ulysses , antes de falar concretamente da entrevista de FHC, no programa de TV comandado com brilho e graça pelo jornalista Lucas Mendes, com Caio Blinder ao lado. Em Veneza, o fustigante e provocador Diogo Mainardi. O entrevistado, no estúdio da Globo News, em São Paulo, ao lado do jovem e ilustrado Ricardo Amorim.
IV Mandamento do Decálogo do Estadista: O CARÁTER.
"Na conceituação de Milton Campos, o estadista tem "a posição das suas ideias e não as idéias da sua posição". Não é um oportunista, o que se serve da política em lugar de servi-la, o que só pensa nas eleições futuras e não no futuro do País.
Há "democratas" tão furiosos na oposição quão intolerantes no governo. Político de caráter é fiel – às idéias, não à carreira. Pode perder o poder, o emprego, a liberdade, mas não renega as idéias, não perde a vergonha. Galileu foi grande físico, porém como estadista não entraria na história. Quem por medo se retrata, não é estadista", diz Ulysses.
Sei que alguns vão discordar. Uns vão fazer muxoxo. Outros podem até dirigir xingamentos ao autor destas linhas factuais e opinativas semanais. A fidelidade a Sua Excelência o Fato (outra expressão bem ao gosto do autor de Rompendo o Cerco) é pedra de toque no jornalismo, como deveria ser igualmente na política e na administração pública.
Neste sentido, é imperativo dizer, sobre a entrevista de FHC: as palavras do mandamento citado se encaixam com perfeição e plenitude na figura e nas palavras do entrevistado. O fato em si, dos estertores de 2013, é transcendente. Segue repercutindo como algo da maior relevância nestes primeiros dias de 2014.
Algo com força de conteúdo farto e variado para perdurar ainda por um bom tempo no ar e nas mentes. Isso eu posso afirmar – sem ser e nunca ter sido um "fernandista militante e entusiasta", a exemplo, abertamente, da maioria de seu entrevistadores no programa da Globo News - , baseado no que vi e ouvi pessoalmente. Política, jornalística e culturalmente falando.
Desempenho de mestre. De Homem de Estado (com maiúsculas mesmo), nacional e internacionalmente. "Algo em falta, no Brasil e no mundo, infelizmente, nos dias atuais", como ressaltou o próprio entrevistado. No plano da política, ou estritamente no terreno da comunicação social, acontecimento merecedor de muitas reprises e que não pode ser reduzido às respostas sobre o julgamento do Mensalão e o papel ou o "futuro político" do ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.
Em algumas notícias e análises, na precária repercussão durante esta semana, a tentativa tão maldosa e maledicente quanto ingênua, de reduzir praticamente tudo o que foi perguntado pelos entrevistadores e respondido por FHC, à "falta de traquejo" de Joaquim Barbosa, para uma improvável – mas democrática e respeitável – postulação do jurista firme, corajoso e competente (como fez questão de destacar FHC), ao cargo de presidente da República nas eleições deste ano.
O programa foi muito mais rico em informações e conteúdo intelectual e informativo . Nas perguntas e respostas: sobre passado, presente e futuro do Brasil e do mundo, com seus principais protagonistas atuais, de baixa estatura em liderança e pensamento.
Aos 82 anos, na sétima entrevista ao Manhattan, FHC falou sem mágoas, com grandeza de caráter, verdade e conhecimento pessoal sobre Lula. Com precisão, sobre Obama e suas contradições. Sobre a relevância de Snowden ao desvendar o tamanho monstruoso da espionagem eletrônica, a perda de privacidade e a quebra de confiança mesmo "entre líderes que se proclamam aliados e amigos".
Alertou para os rugidos no Oriente. Para a perda de prestígio da Europa e a maioria de seus dirigentes. Para o bafo cínico e sinistro de Putin, na Rússia, e dos herdeiros de Mao, na China.
Falou sem meias palavras ou subterfúgios interesseiros e imediatistas sobre Dilma e suas vacilações e indigências na política e na administração; sobre possibilidades do tucano Aécio Neves e do socialista pernambucano Eduardo Campos. Sobre preocupações com os tremores na Síria e no Egito.
Citou livros e recomendou leituras. Lamentou a partida de Mandela e saudou com ênfase a chegada do Papa Francisco, esperançosa para a sua igreja e para a humanidade. Palavra de estadista. Vale a pena ver de novo. E rever com mais atenção e critério – de governistas e oposicionistas - nas cópias de vídeos que rolam na página do Manhattan Connection e redes sociais. Confira uma. Garanto que vale a pena.
Vitor Hugo Soares, jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. E-mail: vitor_soares 1@terra.com.br