FOLHA DE SP - 03/08
Gore Vidal, o escritor americano que morreu na quarta-feira, só não fazia pior juízo de seus semelhantes porque não os considerava seus semelhantes. Sim, ele era esnobe, mas muito engraçado e não poupava ninguém, principalmente seus patrícios. Desprezava a história dos EUA ("construída sobre a violência"), a Constituição americana ("criada para defender a propriedade"), o povo ("confunde inocência com ignorância"), Norman Mailer, Truman Capote, o "New York Times", os intelectuais de Nova York, os críticos, todo mundo -isso, claro, quando se lembrava deles.
Essas foram algumas das frases que anotei ao dar umas voltas com Vidal por Rio e São Paulo quando ele esteve aqui, em 1987. Ao ser apresentado a alguém, perguntava: "Sabia que a biblioteca do [presidente] Reagan acaba de pegar fogo? Ambos os livros foram destruídos!". E, enquanto o outro ria, ele completava: "E, um deles, Reagan ainda nem tinha acabado de colorir". Gostava tanto da história que abriu duas palestras, no auditório da Folha e na Unicamp, com ela.
Em outros momentos, Gore teve de conter o riso. No dia da palestra na Unicamp, um funcionário o levou a um tour pelas instalações e mostrou-lhe as obras de arte nas paredes -reproduções de clássicos italianos em fascículos da Abril, sob molduras de vidro. Para quem morava em Ravello, na Itália, e tropeçava nos originais, não devia ser muito impressionante.
Depois da palestra, foi agraciado com um recital de Villa-Lobos pelo coral da universidade. Pela extensão do concerto ou pelos 35 graus de temperatura, ele me sussurrou: "Nunca mais me deixe ouvir Villa-Lobos". E, quando se levantou, descobriu que sua cadeira estava recém-envernizada, e as tiras tinham ficado marcadas nas costas de seu paletó.
Nem assim Gore perdeu o humor. Como eu disse, ele era esnobe.