Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 11, 2011

A democracia sob medida Mac Margolis


 O Estado de S.Paulo

Para quem acompanha o enredo político na América Latina, o fenômeno é um paradoxo. Como se pode tachar de autoritários certos governos escolhidos por meio das urnas, em países onde circulam jornais de todas as tendências e a sociedade se baliza por leis e normas regidas por legislaturas sob o zelo do Poder Judiciário?
Afinal, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um tirano, segundo seus desafetos, ganhou duas eleições nacionais e meia dúzia de plebiscitos, sem reparos da Justiça nem chiado do Parlamento.
Assim como a Venezuela chavista, seus aliados - Bolívia, Equador, Nicarágua e Belize (o mais novo associado à aliança bolivariana) - convocaram assembleias constituintes para revirar suas Cartas. São ditadores ou apenas mais felizes na sua articulação política dentro das regras do jogo democrático?
O debate vai longe, mas o diabo está nos detalhes. Considere o caso do Equador. Lá, o presidente Rafael Correa propôs à nação uma reforma do Judiciário. A causa é boa. Com 1,2 milhões de processos em atraso, a Justiça equatoriana está à beira do colapso.
No referendo realizado em maio, a população deu não somente seu aval para a faxina presidencial, como estabeleceu um prazo, de até fevereiro de 2013, para que ela esteja concluída. Era tudo o que Correa queria.
Com a chancela do "povo", o presidente equatoriano, aliado de Chávez, decretou um estado de exceção por 60 dias e entregou a tarefa a um Conselho do Judiciário de Transição, escolhido a dedo.
A medida e sua justificativa - para "evitar uma comoção interna iminente" - fazem parte da tradicional cartilha bolivariana, que adoça atos arbitrários com retórica exaltada. Quem ousaria arriscar uma "comoção interna" ao confiar uma pauta tão delicada ao reles Congresso?
A oposição denunciou a "inconstitucionalidade" do decreto presidencial. Melhor seria reclamar ao bispo, pois o Parlamento equatoriano, há muito tempo, já virou a câmara de ventos do oficialismo.
Repressão. A mídia independente está acossada, como é o caso do jornal El Universal, um dos mais influentes do país, que sofreu multa de US$ 40 milhões e recebeu mandado de prisão contra três de seus diretores por ter "ofendido" o presidente.
Tocada por fieis a Correa, a reforma do Judiciário promete apertar ainda mais o poder central sobre a magistratura. Tudo isso sob o roteiro da democracia "revolucionária", em que as regras consagradas se tornam instrumento particular.
A reforma é arbitrária? Mas como, se o povo deu sinal verde? Silenciar a imprensa é ilegal? E se foi a Justiça que mandou? O presidente atropela o congresso? Mas não foram os próprios congressistas que consentiram?
O risco é bastante claro. Vergar a lei para moldar uma agenda particular desmoraliza as instituições democráticas. Corrói a fé nos processos legítimos, vitais para modernizar o país e civilizar a vida democrática.
Veja o exemplo da Venezuela, onde os pesquisadores do governo travam uma batalha heroica para recensear o país de 29 milhões. Ninguém dúvida, a pesquisa porta a porta é crucial para entender a sociedade, calibrar políticas públicas, de saúde e educação, e levar recursos aos mais necessitados.
Represálias. Faltou combinar com os venezuelanos, que, traumatizados com a bisbilhotice chavista, passaram a fechar as portas de casa aos pesquisadores. Ninguém se esquece da infame Lista Tascón, que reuniu dados de quem votou contra o governo no plebiscito de 2003, resultando em represálias e até em demissões do serviço público.
O mesmo ocorre na Argentina, onde ninguém mais leva a sério os números do Indec, o tradicional instituto de estatísticas oficial, dominado e manipulado pelo governo de Cristina Kirchner.
É do Indec que os empresários e estudiosos olhavam para saber a quanto andava a inflação e o crescimento do PIB e para decidir aumentos salariais. No entanto, desde então, a presidente Kirchner demitiu seu diretor, em 2007, e ameaçou multar, e até processar, quem divulgasse dados diferentes dos oficiais.
Risco da democracia. A ingerência, entretanto, tem um preço alto. Pelo Indec, a inflação argentina está 9,7% ao ano. De acordo com o mercado, porém, o índice já passa dos 25%.
Eis o risco da democracia sob medida, onde a economia perdeu a bússola, os cidadãos sonegam informações vitais, os tribunais aceleram ao ritmo do mandatário e a mídia e o Congresso exprimem-se a vontade, desde que digam sim.
É COLUNISTA DO ''ESTADO'', CORRESPONDENTE DA REVISTA ''NEWSWEEK'' NO BRASIL E EDITA O SITE
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