Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 05, 2011

Direito à felicidade:: Miguel Reale Júnior

O Estado de S.Paulo - 05/02/11

Em fins do ano passado foi aprovada na Comissão de Constituição e
Justiça do Senado a denominada Emenda Constitucional da Felicidade,
que introduz no artigo 6.º da Constituição federal, relativo aos
direitos sociais, frase com a menção de que são estes essenciais à
busca da felicidade.

Assim, pretende-se alterar o artigo 6.º da nossa Carta Magna para
direcionar os direitos sociais à realização da felicidade individual e
coletiva. O texto sugerido é o seguinte: "Art. 6.º - São direitos
sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição".

Segundo o senador Cristovam Buarque, a mudança na lei vai forçar os
entes públicos a garantir condições mínimas de vida aos cidadãos, ao
lado de se "humanizar a Constituição brasileira para tocar o coração
com a palavra felicidade".

Igualmente, na Câmara dos Deputados foi apresentada emenda
constitucional pela deputada gaúcha Manuela D"Ávila, cuja
justificativa é "elevar o sentimento ou estado de espírito que,
invariavelmente, é a felicidade, ao patamar de um autêntico direito".

Pondera-se, também, que a busca individual pela felicidade pressupõe a
observância da felicidade coletiva. Há felicidade coletiva quando são
adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade. E
a sociedade será mais feliz se todos tiverem acesso aos básicos
serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura,
lazer, dentre outros, ou seja, justamente os direitos sociais
essenciais para que se propicie aos indivíduos a busca da felicidade.

Na justificativa da emenda, refere-se como exemplo o artigo 1.º da
Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776, no qual se
diz: "Art.1.º - Todos os homens nascem igualmente livres e
independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais
não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade:
tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de
adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a
segurança".

Igualmente, lembra-se o Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789, em cujo final se afirma que a declaração é
feita para lembrar aos homens os seus direitos naturais, inalienáveis
e sagrados, e também a fim de que as reclamações dos cidadãos, dali em
diante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam
sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.

Pensa-se possível obter a felicidade a golpes de lei, em quase ingênuo
entusiasmo, ao imaginar que por dizer a Constituição serem os direitos
sociais essenciais à busca da felicidade se vai, então, forçar os
entes públicos a garantir condições mínimas de vida para, ao mesmo
tempo, humanizar a Constituição. Fica por conta do imaginário, sempre
bem recebido em nosso país, a ilusão de que é concretamente importante
"elevar o sentimento ou estado de espírito que invariavelmente é a
felicidade ao patamar de um autêntico direito".

A menção à felicidade era própria da concepção de mundo do Iluminismo,
quando a deusa razão assomava ao Pantheon e a consagração dos direitos
de liberdade e de igualdade dos homens levava à crença na contínua
evolução da sociedade para a conquista da felicidade plena sobre a
Terra. Os espíritos estavam dominados por grande otimismo em face do
desfazimento da opressão do Ancien Régime e da descoberta dos direitos
do homem. Trazer para os dias atuais, depois de todos os percalços que
a História produziu para os direitos humanos, a busca da felicidade
como fim do Estado de Direito é um anacronismo patente, sendo
inaceitável hoje a inclusão de convicções apenas compreensíveis no
irrepetível contexto ideológico do Iluminismo.

Confunde-se nessas proposições bem-intencionadas, politicamente
corretas, o bem-estar social com a felicidade. A educação, a
segurança, a saúde, o lazer, a moradia, e outros mais, são
considerados direitos fundamentais de cunho social pela Constituição
exatamente por serem essenciais ao bem-estar da população no seu todo.
A satisfação desses direitos constitui prestação obrigatória do Estado
visando dar à sociedade bem-estar, sendo desnecessária, portanto, a
menção de que são meios essenciais à busca da felicidade para se gerar
a pretensão legítima ao seu atendimento.

O povo pode ter intensa alegria, por exemplo, ao se ganhar a Copa do
Mundo de Futebol, mas não há felicidade coletiva, e sim bem-estar
coletivo. A felicidade é um sentimento individual tão efêmero como
variável, a depender dos valores de cada pessoa.

Em nossa época consumista, a felicidade pode ser vista como a
satisfação dos desejos, muitos ditados pela moda ou pelas
celebridades, como um passeio pelo Rio Nilo. A felicidade pode ser a
obtenção de glórias, de poder, de dinheiro, com a sofreguidão de que a
satisfação de hoje empurra a um novo desejo amanhã. A felicidade pode
residir no reconhecimento dos demais, por vezes importantes para o
juízo que se faz de si mesmo. Ter orgulho, ter sucesso profissional
podem trazer felicidade, passível de ser desfeita por um desastre, uma
doença.

Também a felicidade pode advir, como propõe o budismo, de estar
liberto dos desejos, ou por ficar realizado apenas com a satisfação
dos desejos acessíveis. A felicidade é possível pela perda do medo das
perdas, por ter harmonia com a natureza, graças ao conformismo com as
contingências, pela imersão na vida espiritual e pela contemplação, na
dedicação aos necessitados, bem como em vista de uma relação afetiva.

Assim, os direitos sociais são condições para o bem-estar, mas nada
têm que ver com a busca da felicidade. Sua realização pode impedir de
ser infeliz, mas não constitui, de forma alguma, dado essencial para
ser feliz.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA
ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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