Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 04, 2009

VEJA Medicina A revolução dos transplantes


Muito além da cirurgia

Nenhum procedimento influenciou tantas especialidades
médicas quanto os transplantes. Seus benefícios estendem-se
às mais diversas áreas – da infectologia à cardiologia, da
imunologia às pesquisas com células-tronco


Adriana Dias Lopes e Naiara Magalhães

Fabiano Accorsi

Suspense até o último instante
Médicos do Incor, em São Paulo, durante um transplante de coração realizado no início de março



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Exclusivo on-line
Em Saúde, a evolução dos transplantes

Na sala 11 do centro cirúrgico do Instituto do Coração de São Paulo, nove profissionais, entre médicos, enfermeiras e instrumentistas, estão prontos para a realização de mais um transplante cardíaco. Há pelo menos uma hora e meia, o paciente está na mesa de operação, o tórax escancarado por espátulas de metal, já sem o seu próprio coração, a circulação sanguínea a cargo de uma máquina pesadona, colocada ao lado. O cirurgião Ronaldo Honorato Santos entra apressado. Nas mãos, um pote branco. Dentro dele, o coração do doador – extraído uma hora antes do corpo de um rapaz morto em um acidente de carro no interior paulista. Mergulhado em compostos de preservação, em baixa temperatura, o coração, pálido e murcho, é retirado do recipiente e entregue ao médico Alberto Fiorelli, cirurgião responsável pela operação. O transplante começa. Fiorelli ajusta o tamanho dos vasos sanguíneos do coração doador às medidas do receptor e acomoda o órgão no peito do paciente. As vozes dos médicos misturam-se às conversas vindas do corredor. Frequentemente, um celular toca. Algumas ligações são atendidas; outras, ignoradas.

Quase duas horas depois do início da cirurgia, 70% dos vasos sanguíneos do novo coração já estão conectados aos do paciente. Agora, o silêncio toma conta da sala. Pela primeira vez, os cirurgiões Fiorelli e Honorato colocam os bisturis e tesouras de lado. Seus olhos estão fixos no novo coração, ainda apagado no peito do doente. É o momento mais angustiante de um transplante: a espera pelo instante em que o órgão doado volta a funcionar no corpo do receptor. Cerca de um minuto se passa e nada. Fiorelli começa a massagear o novo coração com as mãos. Aos poucos, o órgão perde a palidez e ganha volume. É sinal de que o sangue circula por ele. O cirurgião rompe o silêncio com uma ordem:

– Adrenalina.

Uma enfermeira lhe entrega uma seringa e ele injeta o medicamento numa veia logo acima do músculo cardíaco. Três minutos depois, o coração finalmente começa a bater. Seu ritmo ainda é descompassado. Para regulá-lo, os médicos aplicam choques elétricos por meio de um desfibrilador. Só depois de normalizados os batimentos é que se conecta o restante dos vasos sanguíneos.

Os transplantes estão entre os procedimentos mais complexos e fascinantes da medicina. A doentes que já esgotaram todas as chances de cura para seus males, hoje é oferecida a possibilidade de substituir, além do coração, rim, fígado, pulmão, pâncreas, intestino, córnea, medula óssea, pele, valva cardíaca, ossos e esclera ocular. Setenta cirurgias do gênero são realizadas todos os dias no Brasil – o que representa um aumento de 10% de 2007 para 2008. Esses números só não são maiores porque, não bastasse o fato de as doações serem em quantidade insuficiente, o sistema de captação e distribuição de órgãos no país é falho. Para contemplar os 70.000 brasileiros à espera de um transplante seria necessário setuplicar o número de doadores (veja reportagem). Apesar desses problemas, os transplantes salvam todos os anos a vida de cerca de 5 000 brasileiros. Indiretamente, no entanto, eles beneficiam um contingente muito maior de pessoas – impossível de ser mensurado. Isso porque, para garantir a sobrevivência dos pacientes transplantados, foi necessário esmiuçar ainda mais o funcionamento do corpo humano, refinar e inventar técnicas cirúrgicas e aprimorar e desenvolver remédios antirrejeição. De tais pesquisas resultaram descobertas valiosas para as mais diversas especialidades – da cardiologia à imunologia, da medicina intensiva à infectologia. "Nenhum outro procedimento influenciou tantas áreas médicas quanto os transplantes", diz o cirurgião hepático Silvano Raia, professor emérito da Universidade de São Paulo. Os transplantes exercem sobre as outras especialidades o que se costuma chamar de "efeito Nasa". A expressão refere-se ao impacto das tecnologias desenvolvidas pela agência espacial americana sobre o nosso dia a dia.

Um dos campos que mais lucraram com as conquistas da medicina dos transplantes foi o da imunologia, graças ao estudo dos processos envolvidos na rejeição de um órgão. O salto que essa área da medicina deu nas últimas cinco décadas é comparável à passagem da idade da pedra para a idade das luzes. Até os anos 60, acreditava-se que as principais células de defesa do organismo eram os linfócitos B, responsáveis pela produção de anticorpos. As pesquisas com os primeiros transplantados revelaram, porém, a existência de outro grupo de linfócitos, os T, muito mais ativos e potentes do que os B. E, entre os linfócitos T, verificou-se, em meados dos anos 80, que as células CD4 são as verdadeiras comandantes do sistema imune diante da presença de um agente estranho ao organismo. Tal descoberta facilitou (e muito) o trabalho dos estudiosos que desvendaram o mecanismo de ação do HIV, o vírus da aids – e, consequentemente, agilizou a criação de medicamentos contra a doença.

No processo típico de rejeição a um transplante, os linfócitos T ativam a reação contra o órgão doado – como se o novo coração ou fígado fosse um inimigo a ser destruído. O mapeamento dos mecanismos envolvidos nesse ataque foi essencial para o entendimento das doenças autoimunes. Entre elas, o diabetes tipo 1. Em 1984, médicos da cidade americana de Minneapolis realizaram um transplante de pâncreas (um pedaço dele) entre irmãs gêmeas idênticas. Pouco tempo depois da cirurgia, apesar de o novo órgão não ter sido rejeitado, a receptora voltou a apresentar os sintomas da doença. Uma investigação mais aprofundada revelou que o sistema imune dela destruíra as células pancreáticas produtoras de insulina. O problema surgido do transplante entre as gêmeas americanas confirmou o que algumas pesquisas apenas indicavam: o diabetes tipo 1 resulta do ataque do sistema imunológico do doente contra seu próprio organismo. Abriu-se dessa forma um novo capítulo no tratamento do distúrbio.

Como o transplante é um recurso extremo, só os doentes em estado gravíssimo entram na fila de espera por um novo órgão. E, não raro, os médicos recorrem a tratamentos experimentais na tentativa de garantir a vida dos pacientes até que eles cheguem à mesa de cirurgia. Lançados na década de 60, os betabloqueadores eram indicados inicialmente apenas para o combate da hipertensão. Vinte anos depois, médicos americanos passaram a usar o remédio para vítimas de insuficiência cardíaca e hipertensão que aguardavam um coração novo. Tal conduta era evitada por receio de que o medicamento reduzisse ainda mais a contração do músculo cardíaco, piorando o quadro clínico do doente. Não foi o que ocorreu. Mais: o uso de betabloqueadores possibilitou que 20% dos pacientes saíssem da fila. Disseminou-se, assim, a administração desse tipo de remédio entre as vítimas de insuficiência. Hoje, nove em cada dez o tomam.

De todas as contribuições dos transplantes para a medicina, nenhuma é tão fascinante quanto a que deu origem às investigações sobre as células-tronco. Depois da II Guerra Mundial, ao estudarem os efeitos da radiação em ratos de laboratório, médicos americanos e canadenses passaram a suspeitar que havia na medula óssea células capazes de regenerar as células sanguíneas destruídas pela contaminação radioativa. A tais células eles deram o nome de primitivas. Veio dos primeiros transplantes de medula, nos anos 60, a comprovação prática de que tal hipótese estava correta. A medula é uma fonte rica em células capazes de regenerar, além do sangue, outros órgãos e tecidos. Estava aberto o caminho para que fossem identificadas as células-tronco, a grande esperança da medicina para a cura dos mais diversos males.

A literatura médica registra que o primeiro transplante de órgão bem-sucedido foi um de rim, realizado em 1954, em Boston, nos Estados Unidos, entre irmãos gêmeos idênticos. A sanguinolência dos procedimentos pioneiros impressionava até mesmo o mais frio dos cirurgiões. "Hoje, praticamente não há perda de sangue durante uma cirurgia", diz o cirurgião Sergio Mies, chefe da equipe de transplantes do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo. Para se ter uma ideia, os primeiros transplantes de fígado duravam até 24 horas (hoje levam em média cinco horas) e era preciso usar uma bomba de infusão rápida que injetava quase 20 litros de sangue no decorrer da cirurgia.

Em que pesem todos os avanços, a rejeição continua a ser o grande desafio da medicina dos transplantes. A descoberta, nos anos 80, de imunossupressores mais precisos e potentes significou uma revolução, ao aumentar drasticamente a sobrevida dos operados. Exemplo: o índice de pacientes vivos um ano depois de um transplante de rim saltou de 70% para quase 100%. Mas ainda se está longe do ideal. Tais remédios devem ser tomados por toda a vida e oferecem reações adversas severas. A solução pode vir dos estudos sobre imunorregulação. Os especialistas buscam um composto capaz de evitar a rejeição sem que seja necessário deprimir o sistema imune do paciente. Há também, é claro, a aposta nas terapias com células-tronco. Com elas, chegaria ao fim o problema da rejeição, uma vez que órgãos e tecidos criados em laboratório poderiam ser programados com a genética do paciente. Se tudo der certo nesse sentido, em um futuro não muito distante a medicina deve encerrar um ciclo. As células-tronco, descobertas nas primeiras transferências de medula, devem transformar os transplantes – do modo como os conhecemos hoje – em procedimentos do passado.

Áreas beneficiadas pela medicina dos transplantes

Infecções em geral
As pesquisas sobre a rejeição de órgãos transplantados foram fundamentais para a compreensão do sistema imunológico. Graças a elas, nos anos 80, descobriu-se que as células CD4, um tipo de linfócito T, regem a resposta imune do organismo à presença de um agente agressor

Aids
Os estudos em torno dos remédios imunossupressores ajudaram a desvendar como o HIV aniquila as defesas do doente. O vírus da aids inibe a ação das células CD4, levando-as à morte – processo semelhante à ação dos remédios antirrejeição

Diabetes tipo 1
Um transplante de pâncreas realizado em 1984 entre irmãs gêmeas idênticas, nos Estados Unidos, foi decisivo para a caracterização do diabetes tipo 1 como doença autoimune

Artrite reumatoide
O estudo do processo de rejeição impulsionou a criação dos remédios biológicos contra a artrite reumatoide. Eles inibem a ação das citocinas, substâncias do sistema imunológico que estão envolvidas no dano às articulações

Insuficiência cardíaca
Ministrados inicialmente apenas contra a hipertensão, os betabloqueadores começaram a ser indicados para as vítimas de insuficiência depois da constatação de que eles aumentavam a sobrevida dos pacientes à espera de um transplante de coração

Obstrução coronária
A rapamicina, um imunossupressor desenvolvido na década de 90, agora ajuda a desobstruir artérias entupidas por placas de gordura. Quando usada para embeber o stent, a rapamicina previne novas obstruções

Morte encefálica
Para garantir que os órgãos para doação se mantivessem em bom estado, foi necessário estabelecer, nos anos 60, protocolos médicos para o diagnóstico preciso da morte encefálica

Células-tronco
Com os transplantes de medula óssea, comprovou-se a existência de células indiferenciadas capazes de dar origem às células de diversos tecidos e órgãos do corpo humano – depois chamadas de células-tronco

27 horas de cirurgia

Cristiano Mariz

"Há 22 anos, eu recebi na mesma cirurgia um fígado e um rim. Foi o primeiro transplante duplo realizado na América Latina. Eu sofria de uma má-formação congênita do fígado que levou à insuficiência renal. Às vésperas da operação, eu, que tenho 1,78 metro de altura, pesava apenas 54 quilos. Era só pele, osso e nariz, como costumo brincar. A cirurgia durou 27 horas. Eu fui anestesiado no sábado e só acordei na segunda-feira. Fiquei quase dois meses no hospital, tamanho o medo que os médicos tinham da rejeição. Depois da alta, não pude voltar para Campo Grande, minha cidade natal. Tive de ficar em São Paulo, onde ocorreu o transplante, por um ano, para que os médicos conseguissem acertar a dosagem dos imunossupressores. Hoje, estou ótimo. Não sinto mais nada – a não ser o que todo mundo sente: fome, sede, calor, frio... Trabalho normalmente e adoro pescar. Mas meus filhos agora inventaram que eu estou ficando velho e querem me acompanhar. E muita gente na beira do rio não dá – espanta os peixes."
Alfredo Nimer 61 anos, engenheiro civil, transplante duplo de rim e fígado em 1987

Apreensão e felicidade

Lailson Santos

"Desconfiei de que as coisas não estavam bem em 2000, quando passei a perder o fôlego em caminhadas curtas, de quinze minutos. Meses depois, ficava ofegante só de subir as escadas da minha casa. Ao identificar a insuficiência cardíaca, o cardiologista tentou controlar a doença com medicamentos. Os remédios funcionaram muito bem por seis anos. Em 2007, no entanto, os sintomas voltaram. Quando soube que o transplante era minha única esperança, fiquei atordoado. No dia 4 de fevereiro, minha mulher atendeu ao telefonema do Instituto do Coração de São Paulo anunciando que havia chegado minha vez na fila. Senti uma mistura de apreensão e felicidade. Mas deu tudo certo. A sensação de ter minha vida de volta supera qualquer sentimento de estranheza por ter um órgão de outra pessoa. Sei que nasci de novo."
Hélio Fujita 61 anos, pediatra, transplante de coração em fevereiro deste ano

Novo nascimento

Lailson Santos


"Descobri que tinha hepatite C por acaso, há quinze anos. Tomei remédios para tentar negativar o vírus, mas depois de dez anos infectado comecei a me sentir muito mal: tinha falta de ar, porque a doença afetou os pulmões, e engasgava com os alimentos, porque o esôfago também já estava comprometido. Foi então que os médicos decidiram me colocar na fila do transplante. A perspectiva é que eu esperaria quatro anos, mas meu irmão resolveu me doar uma parte do fígado dele e, em menos de um ano, eu fiz a cirurgia. Tirei a sorte grande. Não sinto mais falta de ar, passei a fazer musculação para ficar mais saudável e voltei a cursar a faculdade de História que eu tinha começado depois de me aposentar. O dia da cirurgia é comemorado até hoje como meu novo nascimento."
José Roberto Nunes 64 anos, professor universitário aposentado, transplante de fígado em 2006

As vantagens do controle on-line

O Brasil tem o maior programa público de transplantes do mundo. De cada 100 cirurgias do gênero, 92 são pagas pelo governo, que investe anualmente 530 milhões de reais no sistema. No entanto, para que o país se torne referência na área, é preciso aprimorar o sistema de doação, captação e distribuição de órgãos. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas nessa direção foi a da Secretaria da Saúde de São Paulo. Em 2006, ela criou o Webtransplante, uma base de dados on-line que permite aos médicos e ao governo acompanhar diariamente o resultado das cirurgias realizadas no estado e, a partir daí, planejar melhorias. Logo ao entrar no ar, o Webtransplante detectou dois problemas: falhas nas notificações de morte encefálica e poucos doadores efetivos. Muitos órgãos, por exemplo, eram desperdiçados por falhas na manutenção do corpo do doador ou por causa da recusa dos parentes em fazer a doação. Na tentativa de reverter esse quadro, mais de 500 profissionais foram treinados para ajudar na identificação de doadores potenciais e fazer contato com as famílias. Em um ano, o número de doadores aumentou 29% e o de órgãos transplantados, 34%.

Em São Paulo, há ainda o acompanhamento dos pacientes depois do transplante. Pelo Webtransplante, cada equipe médica informa periodicamente à secretaria as condições de saúde dos operados. Como os hospitais têm no máximo dois meses para fazê-lo, sob pena de não conseguir cadastrar mais pacientes na fila, o governo consegue acompanhar o resultado de todos os pacientes, de forma a aprimorar ainda mais o sistema. A partir desse monitoramento, é possível determinar até que ponto um transplante é eficaz ou não – e também o grau de sucesso de cada hospital e seus respectivos médicos. O chefe dos transplantes do Hospital Albert Einstein, Ben-Hur Ferraz Neto, entusiasta do banco de dados on-line, considera que São Paulo tem hoje um dos melhores sistemas de informação sobre transplantes do mundo. "As decisões para melhorar o sistema são tomadas a partir de dados concretos, e não de impressões", diz ele. "Se esse sistema fosse implantado no país inteiro, o Brasil daria um enorme passo adiante."

Para fazer a fila andar melhor

Lailson Santos

Pioneirismo
O cirurgião inglês Paul McMaster é um dos principais responsáveis pelos avanços nos transplantes de fígado

O cirurgião inglês Paul McMaster é um dos pioneiros dos transplantes hepáticos, o mais complexo de todos os transplantes. Em 1980, juntamente com o médico Elwyn Elias, ele fundou a Unidade de Fígado da Universidade de Birmingham, no interior da Inglaterra. De lá para cá, o centro transformou-se num difusor de inovações. É de McMaster e sua equipe, por exemplo, a descoberta de que algumas pessoas podem, sim, beneficiar-se de um fígado não inteiramente perfeito. Com isso, as filas passaram a andar mais rapidamente e muitas vidas foram salvas. Hoje, aos 65 anos, McMaster atua na organização humanitária Médicos sem Fronteiras, coordenando equipes em áreas de conflito na África. Durante sua última visita ao Brasil, McMaster falou à repórter Naiara Magalhães.

Órgãos não perfeitos
No começo da década de 90, minha equipe em Birmingham percebeu que muitos órgãos antes considerados impróprios para o transplante poderiam salvar vidas. Pouquíssimos órgãos são "perfeitos", mas muitos são adequados e podem ser usados de maneira bem-sucedida em alguns pacientes. Por exemplo: uma pessoa que tem o sangue infectado pelo vírus da hepatite C, mas não tem a doença instalada no fígado, pode ser um bom doador para um paciente com cirrose hepática também causada pelo vírus da hepatite C. Ainda que esse receptor contamine o fígado transplantado, ele provavelmente viverá muito bem entre dez e vinte anos sem comprometer o funcionamento do novo órgão. Com essa mudança de abordagem, foi possível aumentar o número de pacientes salvos. Há vinte anos, de 50% a 70% das pessoas à espera de um transplante de fígado, em todo o mundo, morriam antes ser atendidas. Hoje, esse índice fica em torno de 15%.

Um em dois
A maior inovação dos últimos anos, no campo do transplante de fígado, foi o desenvolvimento da técnica de dividir um órgão para beneficiar duas pessoas: em geral, a menor parte vai para uma criança e a maior fica com um adulto. É um procedimento difícil de ser realizado, mas uma ótima maneira de aumentar o número de operados. Os avanços na área cirúrgica permitiram, ainda, diminuir o sofrimento das pessoas que passam por um transplante de fígado. Há vinte anos, essa operação durava de dezessete a 24 horas. Atualmente, leva cinco horas, em média. O tempo de recuperação pós-operatória também caiu pela metade – de trinta dias para duas semanas ou até dez dias, em alguns casos.

A cura
A maioria das pessoas que passam por um transplante de fígado consegue, hoje, ter uma vida normal. Se o paciente ultrapassar o primeiro ano, a chance de ele durar os próximos vinte, e com qualidade de vida, é maior do que em qualquer outro transplante. Com moderação, ele pode fazer tudo – até tomar uma taça de vinho no almoço. Uma das maiores contribuições para a melhoria da qualidade de vida dos transplantados ocorreu a partir do momento em que otimizamos o uso dos medicamentos antirrejeição, os imunossupressores. Tais medicamentos são muito agressivos e costumam causar problemas graves, como insuficiência renal, hipertensão, diabetes e colesterol alto. Minha equipe em Birmingham começou a usar esses remédios em menor quantidade, de forma a devolver às pessoas uma existência de fato normal. Nós diminuímos as dosagens ao mínimo suficiente para evitar a rejeição e, ao mesmo tempo, reduzir seus efeitos colaterais. De 15% a 25% dos pacientes, especialmente os mais idosos, ainda sofrem com os efeitos da medicação. Mas o mais importante é que, para a maioria das pessoas, o transplante de fígado representa a cura total.

Informações preciosas
O maior gargalo na área dos transplantes de fígado ainda é o número de doadores. Os países com as melhores taxas de pessoas salvas por esse tipo de cirurgia – a Espanha, em primeiro lugar, além de Inglaterra, França e Bélgica – são aqueles que investiram em ações capilares para aumentar o número de doações. Uma das estratégias mais eficazes é criar uma rede de coordenadores de transplantes em todo o país. Esses profissionais monitoram os hospitais para identificar os potenciais doadores, fazem o contato (sempre delicado) com as famílias, explicando que o diagnóstico de morte encefálica é absolutamente preciso e esclarecendo os benefícios da doação de órgãos. Outra estratégia fundamental para incentivar o aumento das doações é informar o maior número possível de pessoas sobre como esse tipo de cirurgia é capaz de salvar milhares de vidas a cada ano. A população tem de ter acesso a todos os dados do trabalho feito pelos médicos. Na Inglaterra, por exemplo, essas informações estão na internet. Dessa forma, as pessoas não precisam acreditar apenas num discurso edificante. Elas têm a oportunidade de conferir os resultados e tirar suas próprias conclusões.

Os mais doentes, primeiro
Administrar a fila do transplante também é fundamental para evitar desperdícios e salvar vidas. É crucial que o paciente mais necessitado receba o órgão primeiro. Já adotado nos Estados Unidos e em boa parte da Europa, esse modelo começa a ser posto em prática por um número crescente de países. No Brasil, isso ocorre desde 2006. Até então, vigorava o sistema da lista cronológica, em que a prioridade era dada a quem estava na lista havia mais tempo. Sob a vigência dos critérios antigos, um paciente muito doente morria antes de chegar a sua vez, enquanto outro, em estado menos grave, era beneficiado. Além disso, o critério cronológico produzia listas muito maiores. Os pacientes com doenças hepáticas costumavam entrar na fila antes de precisar realmente do transplante, apenas por saber que o tempo de espera seria muito longo.

Uma decisão difícil
Há situações em que a pessoa está tão doente que receber um fígado novo não vai ajudá-la. Nesses casos, o melhor é não fazer o transplante. Para receber um órgão doado, o paciente tem de ter mais de 80% de chance de sobreviver por mais de cinco anos com o transplante e 70% de probabilidade de morrer em um ou dois anos se não passar pela cirurgia. Esse é um dos julgamentos mais difíceis que o médico tem de fazer, mas é essencial: se o transplante não pode ajudar uma pessoa, é melhor usar o órgão para melhorar a vida de outra.



Ilustração Bryan Christie Design



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Uma história de
dedicação e sucesso

Como Santa Catarina se transformou no estado brasileiro
com o maior número de doadores efetivos de órgãos


Adriana Dias Lopes, de Blumenau

Fotos Anderson Schneider
EQUIPE AFINADA
Em setembro do ano passado, o cirurgião Mauro Igreja (à esq.), do Hospital Santa Isabel, em Blumenau, chegou a participar de dezesseis transplantes, além de viajar por diversas cidades para captar órgãos. À direita (em sentido horário), a assistente social Maria, a enfermeira Solange e a psicóloga Rosi: elas vão atrás de autorização dos familiares de pacientes para a doação


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Muito além da cirurgia

Eram 4h20 da tarde de 21 de julho de 2001 quando a dona de casa catarinense Margarida Fritzke recebeu a notícia de que sua filha, Raquel, entrara em morte encefálica. Aos 20 anos, a moça não resistiu a uma cirurgia no cérebro para a retirada de um tumor na glândula hipófise. Ao comunicado de que os órgãos da jovem poderiam ser doados e, dessa forma, salvar vidas, a mãe manteve-se inflexível e irredutível: "Ninguém mexe em minha filha. Ela será enterrada inteira". Seis anos e quatro meses se passaram e o que parecia improvável aconteceu. Num exame de rotina, aos 15 anos, Denis, o segundo filho de Margarida, foi diagnosticado com um tumor raro de fígado. Diante da constatação dos médicos de que só um transplante salvaria o menino, a mãe desabou: "Percebi ali o enorme erro que havia cometido ao me recusar a doar os órgãos de Raquel. Cheguei a pensar que eu não merecia a chance de salvar meu filho. Luto todos os dias para não me deixar dominar pela culpa". Inscrito na fila para a recepção de um fígado, Denis foi operado em apenas quinze dias. Se a família Fritzke não morasse em Santa Catarina, Margarida provavelmente teria perdido seu outro filho por falta de doadores. Nos demais estados brasileiros, a espera por um fígado varia de um a dois anos, e Denis tinha, conforme os prognósticos mais otimistas, apenas três meses de vida.

O sistema de transplantes de Santa Catarina é exemplar. O número de doadores efetivos do estado é o mais alto do país (veja os quadros). Santa Catarina fechou 2008 com 16,7 doadores por milhão de habitantes, enquanto a média nacional é de minguados sete doadores por milhão de habitantes. Por doador efetivo entenda-se o corpo pronto para a retirada dos órgãos, quando já foram vencidas todas as etapas do processo de captação – do diagnóstico de morte encefálica à manutenção do corpo na UTI, passando pela autorização familiar. "Ninguém morre numa fila de espera por falta de médicos, hospitais ou remédios", diz Joel Andrade, coordenador da Central de Transplantes de Santa Catarina. "Morre-se por falta de órgãos." No caso específico do fígado, a morosidade da fila é ainda mais perniciosa. "Dias a mais de espera costumam ser determinantes", afirma o cirurgião hepático Julio Cesar Wiederkehr, do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. "Não há tratamentos paliativos para quem chegou ao ponto de precisar de um transplante hepático." Como em Santa Catarina a fila por um fígado é mais veloz do que no resto do país, o estado se tornou o campeão nacional dos transplantes hepáticos.

O DESTINO BATE À PORTA
O destino bate à porta Denis, entre os pais, Margarida e Hilário, recebeu um fígado recentemente. Há oito anos, a família havia recusado doar os órgãos da filha mais velha

Tal velocidade fez com que vários pacientes optassem por esperar um novo órgão em Santa Catarina. Há duas condições para que uma pessoa se candidate a um transplante: ela só pode estar inscrita na lista de um hospital e morar num raio de até 60 quilômetros do local onde ocorrerá a cirurgia. Em janeiro passado, a professora Olga Marcondes, em companhia do marido, Ernizio, deixou a casa, os três filhos e o neto em São Paulo e mudou-se para um flat na cidade de Blumenau, o principal centro catarinense transplantador de fígado. Aos 56 anos, vítima de uma cirrose autoimune, ela ingressou na fila dos transplantes paulista em 2005. "Até outubro do ano passado, no entanto, o pessoal de São Paulo não era capaz de me dar uma previsão de quando chegaria a minha vez de ser operada." A expectativa é que ela receba um novo fígado em julho, no máximo. Assim como Olga, 10% dos 100 pacientes na lista catarinense são "estrangeiros".

Até cinco anos atrás, Santa Catarina era apenas mais um estado brasileiro a sofrer com a falta de doadores e as dificuldades de captação e distribuição de órgãos. Em 2004, o número de doadores era de sete por milhão de habitantes, o equivalente à média brasileira. A reviravolta começou a partir do momento em que os coordenadores da central de transplantes decidiram colocar equipes especializadas em captação de órgãos nos hospitais com centros de neurologia, justamente para onde são encaminhados os pacientes em morte encefálica. Determina a lei federal que todo hospital com mais de oitenta leitos deve ter uma comissão com foco na doação. Hoje, em Santa Catarina, 90% dos hospitais com serviço de neurologia contam com um grupo de profissionais treinados em captação de órgãos – independentemente do número de leitos. Além disso, a maioria dos coordenadores dessas equipes são intensivistas. Faz todo o sentido. São os médicos das UTIs os primeiros a fazer o diagnóstico de morte encefálica de um paciente. Se eles estiverem engajados num programa de transplantes, dificilmente deixarão de comunicar a existência de um doador em potencial. Das mais de 10 000 mortes encefálicas registradas no ano passado no país, apenas a metade foi notificada. Em Santa Catarina, sete em cada dez diagnósticos de óbito são informados.

Decretada a morte encefálica, o primeiro passo é informar a família e pedir autorização para a doação. Segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (Abto), apenas 1% dos parentes de eventuais doadores é abordado. "Muitos profissionais ainda ficam constrangidos em tocar nesse assunto, temendo aumentar o sofrimento da família", diz o cirurgião Sergio Mies, chefe da equipe de transplantes do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo. Geralmente, a solicitação é feita por uma pessoa com a qual os parentes não têm nem tiveram nenhum contato durante a internação – o que, num momento de luto, aumenta a probabilidade de recusa. Para diminuir esse risco, o sistema catarinense prevê que o contato entre a equipe de captação e os parentes do possível doador seja feito assim que ele entrar na UTI. "Paciência é a palavra de ordem", diz a enfermeira Solange Aparecida Ramos, uma das responsáveis pela abordagem familiar no Hospital Santa Isabel, em Blumenau. No início, os profissionais se colocam à disposição para esclarecer qualquer dúvida sobre a condição da pessoa internada. O passo seguinte se dá quando os médicos retiram a sedação do doente, a fim de constatar se o cérebro já está inativo. Durante esse processo, que dura, em média, seis horas, uma psicóloga procura os familiares para consolá-los. A palavra "doação" só é dita pela primeira vez doze horas mais tarde, quando todos os exames necessários para comprovar a morte encefálica foram concluídos. "É mais simples conseguir uma autorização de quem já nos conhece", diz a psicóloga Rosi Meri da Silva, do Hospital Santa Isabel. As estatísticas comprovam a importância de uma abordagem mais humanista. No último ano, a queda nos índices de recusa familiar em Santa Catarina foi de 53%. No resto do Brasil, de 37%.

Autorização concedida, dá-se início a outra batalha: a de conservar os órgãos do paciente morto em condição de serem transplantados por meio de ventilação artificial, doses de medicamentos a intervalos regulares e litros e mais litros de soro. Do contrário, o organismo entra em falência cardiorrespiratória e os órgãos se deterioram por falta de oxigênio. Santa Catarina, mais uma vez, detém um dos melhores índices de manutenção de corpos para transplante. Lá, de cada 100 pacientes em morte encefálica, quase 80% se conservam em condições ideais para o transplante. Em São Paulo, o aproveitamento é de 60%.

De um sistema eficiente, faz parte necessariamente a abnegação profissional – e a dos médicos, enfermeiros e psicólogos catarinenses chega a ser emocionante. Por incrível que pareça, a excelência nas cirurgias hepáticas foi conquistada pela única equipe de transplante de fígado existente no estado: a do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. Somente em janeiro passado foi criado um segundo grupo de especialistas nessa área, o do Hospital São José/Fundação Pró-Rim, em Joinville. Em 2008, no que se refere ao número absoluto de cirurgias, a equipe pioneira ficou atrás apenas de um dos melhores centros de saúde do país, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Os catarinenses fizeram 91 transplantes e os paulistas, 95. Um dos maiores responsáveis pela proeza é o cirurgião Mauro Igreja. Em companhia do motorista Carlão, a bordo de um Gol 2006, 89000 quilômetros rodados, o médico zanza de um lado para outro do estado, num raio de até 300 quilômetros de Blumenau, na tarefa de captar os órgãos para transplante. Distâncias maiores são percorridas em helicópteros ou jatinhos. A dedicação de Igreja é tanta que ele faz questão de participar também do transplante dos órgãos captados. Em geral, o médico que capta não opera. Em setembro do ano passado, ele participou de dezesseis transplantes hepáticos e de mais dezesseis cirurgias para a retirada de órgãos. Saldo total: 100 horas num centro cirúrgico, duas multas por excesso de velocidade e dezesseis vidas salvas.



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