Nenhum procedimento influenciou tantas especialidades
Na sala 11 do centro cirúrgico do Instituto do Coração de São Paulo, nove profissionais, entre médicos, enfermeiras e instrumentistas, estão prontos para a realização de mais um transplante cardíaco. Há pelo menos uma hora e meia, o paciente está na mesa de operação, o tórax escancarado por espátulas de metal, já sem o seu próprio coração, a circulação sanguínea a cargo de uma máquina pesadona, colocada ao lado. O cirurgião Ronaldo Honorato Santos entra apressado. Nas mãos, um pote branco. Dentro dele, o coração do doador – extraído uma hora antes do corpo de um rapaz morto em um acidente de carro no interior paulista. Mergulhado em compostos de preservação, em baixa temperatura, o coração, pálido e murcho, é retirado do recipiente e entregue ao médico Alberto Fiorelli, cirurgião responsável pela operação. O transplante começa. Fiorelli ajusta o tamanho dos vasos sanguíneos do coração doador às medidas do receptor e acomoda o órgão no peito do paciente. As vozes dos médicos misturam-se às conversas vindas do corredor. Frequentemente, um celular toca. Algumas ligações são atendidas; outras, ignoradas. Quase duas horas depois do início da cirurgia, 70% dos vasos sanguíneos do novo coração já estão conectados aos do paciente. Agora, o silêncio toma conta da sala. Pela primeira vez, os cirurgiões Fiorelli e Honorato colocam os bisturis e tesouras de lado. Seus olhos estão fixos no novo coração, ainda apagado no peito do doente. É o momento mais angustiante de um transplante: a espera pelo instante em que o órgão doado volta a funcionar no corpo do receptor. Cerca de um minuto se passa e nada. Fiorelli começa a massagear o novo coração com as mãos. Aos poucos, o órgão perde a palidez e ganha volume. É sinal de que o sangue circula por ele. O cirurgião rompe o silêncio com uma ordem: – Adrenalina. Uma enfermeira lhe entrega uma seringa e ele injeta o medicamento numa veia logo acima do músculo cardíaco. Três minutos depois, o coração finalmente começa a bater. Seu ritmo ainda é descompassado. Para regulá-lo, os médicos aplicam choques elétricos por meio de um desfibrilador. Só depois de normalizados os batimentos é que se conecta o restante dos vasos sanguíneos. Os transplantes estão entre os procedimentos mais complexos e fascinantes da medicina. A doentes que já esgotaram todas as chances de cura para seus males, hoje é oferecida a possibilidade de substituir, além do coração, rim, fígado, pulmão, pâncreas, intestino, córnea, medula óssea, pele, valva cardíaca, ossos e esclera ocular. Setenta cirurgias do gênero são realizadas todos os dias no Brasil – o que representa um aumento de 10% de 2007 para 2008. Esses números só não são maiores porque, não bastasse o fato de as doações serem em quantidade insuficiente, o sistema de captação e distribuição de órgãos no país é falho. Para contemplar os 70.000 brasileiros à espera de um transplante seria necessário setuplicar o número de doadores (veja reportagem). Apesar desses problemas, os transplantes salvam todos os anos a vida de cerca de 5 000 brasileiros. Indiretamente, no entanto, eles beneficiam um contingente muito maior de pessoas – impossível de ser mensurado. Isso porque, para garantir a sobrevivência dos pacientes transplantados, foi necessário esmiuçar ainda mais o funcionamento do corpo humano, refinar e inventar técnicas cirúrgicas e aprimorar e desenvolver remédios antirrejeição. De tais pesquisas resultaram descobertas valiosas para as mais diversas especialidades – da cardiologia à imunologia, da medicina intensiva à infectologia. "Nenhum outro procedimento influenciou tantas áreas médicas quanto os transplantes", diz o cirurgião hepático Silvano Raia, professor emérito da Universidade de São Paulo. Os transplantes exercem sobre as outras especialidades o que se costuma chamar de "efeito Nasa". A expressão refere-se ao impacto das tecnologias desenvolvidas pela agência espacial americana sobre o nosso dia a dia. Um dos campos que mais lucraram com as conquistas da medicina dos transplantes foi o da imunologia, graças ao estudo dos processos envolvidos na rejeição de um órgão. O salto que essa área da medicina deu nas últimas cinco décadas é comparável à passagem da idade da pedra para a idade das luzes. Até os anos 60, acreditava-se que as principais células de defesa do organismo eram os linfócitos B, responsáveis pela produção de anticorpos. As pesquisas com os primeiros transplantados revelaram, porém, a existência de outro grupo de linfócitos, os T, muito mais ativos e potentes do que os B. E, entre os linfócitos T, verificou-se, em meados dos anos 80, que as células CD4 são as verdadeiras comandantes do sistema imune diante da presença de um agente estranho ao organismo. Tal descoberta facilitou (e muito) o trabalho dos estudiosos que desvendaram o mecanismo de ação do HIV, o vírus da aids – e, consequentemente, agilizou a criação de medicamentos contra a doença. No processo típico de rejeição a um transplante, os linfócitos T ativam a reação contra o órgão doado – como se o novo coração ou fígado fosse um inimigo a ser destruído. O mapeamento dos mecanismos envolvidos nesse ataque foi essencial para o entendimento das doenças autoimunes. Entre elas, o diabetes tipo 1. Em 1984, médicos da cidade americana de Minneapolis realizaram um transplante de pâncreas (um pedaço dele) entre irmãs gêmeas idênticas. Pouco tempo depois da cirurgia, apesar de o novo órgão não ter sido rejeitado, a receptora voltou a apresentar os sintomas da doença. Uma investigação mais aprofundada revelou que o sistema imune dela destruíra as células pancreáticas produtoras de insulina. O problema surgido do transplante entre as gêmeas americanas confirmou o que algumas pesquisas apenas indicavam: o diabetes tipo 1 resulta do ataque do sistema imunológico do doente contra seu próprio organismo. Abriu-se dessa forma um novo capítulo no tratamento do distúrbio. Como o transplante é um recurso extremo, só os doentes em estado gravíssimo entram na fila de espera por um novo órgão. E, não raro, os médicos recorrem a tratamentos experimentais na tentativa de garantir a vida dos pacientes até que eles cheguem à mesa de cirurgia. Lançados na década de 60, os betabloqueadores eram indicados inicialmente apenas para o combate da hipertensão. Vinte anos depois, médicos americanos passaram a usar o remédio para vítimas de insuficiência cardíaca e hipertensão que aguardavam um coração novo. Tal conduta era evitada por receio de que o medicamento reduzisse ainda mais a contração do músculo cardíaco, piorando o quadro clínico do doente. Não foi o que ocorreu. Mais: o uso de betabloqueadores possibilitou que 20% dos pacientes saíssem da fila. Disseminou-se, assim, a administração desse tipo de remédio entre as vítimas de insuficiência. Hoje, nove em cada dez o tomam. De todas as contribuições dos transplantes para a medicina, nenhuma é tão fascinante quanto a que deu origem às investigações sobre as células-tronco. Depois da II Guerra Mundial, ao estudarem os efeitos da radiação em ratos de laboratório, médicos americanos e canadenses passaram a suspeitar que havia na medula óssea células capazes de regenerar as células sanguíneas destruídas pela contaminação radioativa. A tais células eles deram o nome de primitivas. Veio dos primeiros transplantes de medula, nos anos 60, a comprovação prática de que tal hipótese estava correta. A medula é uma fonte rica em células capazes de regenerar, além do sangue, outros órgãos e tecidos. Estava aberto o caminho para que fossem identificadas as células-tronco, a grande esperança da medicina para a cura dos mais diversos males. A literatura médica registra que o primeiro transplante de órgão bem-sucedido foi um de rim, realizado em 1954, em Boston, nos Estados Unidos, entre irmãos gêmeos idênticos. A sanguinolência dos procedimentos pioneiros impressionava até mesmo o mais frio dos cirurgiões. "Hoje, praticamente não há perda de sangue durante uma cirurgia", diz o cirurgião Sergio Mies, chefe da equipe de transplantes do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo. Para se ter uma ideia, os primeiros transplantes de fígado duravam até 24 horas (hoje levam em média cinco horas) e era preciso usar uma bomba de infusão rápida que injetava quase 20 litros de sangue no decorrer da cirurgia. Em que pesem todos os avanços, a rejeição continua a ser o grande desafio da medicina dos transplantes. A descoberta, nos anos 80, de imunossupressores mais precisos e potentes significou uma revolução, ao aumentar drasticamente a sobrevida dos operados. Exemplo: o índice de pacientes vivos um ano depois de um transplante de rim saltou de 70% para quase 100%. Mas ainda se está longe do ideal. Tais remédios devem ser tomados por toda a vida e oferecem reações adversas severas. A solução pode vir dos estudos sobre imunorregulação. Os especialistas buscam um composto capaz de evitar a rejeição sem que seja necessário deprimir o sistema imune do paciente. Há também, é claro, a aposta nas terapias com células-tronco. Com elas, chegaria ao fim o problema da rejeição, uma vez que órgãos e tecidos criados em laboratório poderiam ser programados com a genética do paciente. Se tudo der certo nesse sentido, em um futuro não muito distante a medicina deve encerrar um ciclo. As células-tronco, descobertas nas primeiras transferências de medula, devem transformar os transplantes – do modo como os conhecemos hoje – em procedimentos do passado.
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Ilustração Bryan Christie Design |
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Uma história de Como Santa Catarina se transformou no estado brasileiro
Eram 4h20 da tarde de 21 de julho de 2001 quando a dona de casa catarinense Margarida Fritzke recebeu a notícia de que sua filha, Raquel, entrara em morte encefálica. Aos 20 anos, a moça não resistiu a uma cirurgia no cérebro para a retirada de um tumor na glândula hipófise. Ao comunicado de que os órgãos da jovem poderiam ser doados e, dessa forma, salvar vidas, a mãe manteve-se inflexível e irredutível: "Ninguém mexe em minha filha. Ela será enterrada inteira". Seis anos e quatro meses se passaram e o que parecia improvável aconteceu. Num exame de rotina, aos 15 anos, Denis, o segundo filho de Margarida, foi diagnosticado com um tumor raro de fígado. Diante da constatação dos médicos de que só um transplante salvaria o menino, a mãe desabou: "Percebi ali o enorme erro que havia cometido ao me recusar a doar os órgãos de Raquel. Cheguei a pensar que eu não merecia a chance de salvar meu filho. Luto todos os dias para não me deixar dominar pela culpa". Inscrito na fila para a recepção de um fígado, Denis foi operado em apenas quinze dias. Se a família Fritzke não morasse em Santa Catarina, Margarida provavelmente teria perdido seu outro filho por falta de doadores. Nos demais estados brasileiros, a espera por um fígado varia de um a dois anos, e Denis tinha, conforme os prognósticos mais otimistas, apenas três meses de vida. O sistema de transplantes de Santa Catarina é exemplar. O número de doadores efetivos do estado é o mais alto do país (veja os quadros). Santa Catarina fechou 2008 com 16,7 doadores por milhão de habitantes, enquanto a média nacional é de minguados sete doadores por milhão de habitantes. Por doador efetivo entenda-se o corpo pronto para a retirada dos órgãos, quando já foram vencidas todas as etapas do processo de captação – do diagnóstico de morte encefálica à manutenção do corpo na UTI, passando pela autorização familiar. "Ninguém morre numa fila de espera por falta de médicos, hospitais ou remédios", diz Joel Andrade, coordenador da Central de Transplantes de Santa Catarina. "Morre-se por falta de órgãos." No caso específico do fígado, a morosidade da fila é ainda mais perniciosa. "Dias a mais de espera costumam ser determinantes", afirma o cirurgião hepático Julio Cesar Wiederkehr, do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. "Não há tratamentos paliativos para quem chegou ao ponto de precisar de um transplante hepático." Como em Santa Catarina a fila por um fígado é mais veloz do que no resto do país, o estado se tornou o campeão nacional dos transplantes hepáticos.
Tal velocidade fez com que vários pacientes optassem por esperar um novo órgão em Santa Catarina. Há duas condições para que uma pessoa se candidate a um transplante: ela só pode estar inscrita na lista de um hospital e morar num raio de até 60 quilômetros do local onde ocorrerá a cirurgia. Em janeiro passado, a professora Olga Marcondes, em companhia do marido, Ernizio, deixou a casa, os três filhos e o neto em São Paulo e mudou-se para um flat na cidade de Blumenau, o principal centro catarinense transplantador de fígado. Aos 56 anos, vítima de uma cirrose autoimune, ela ingressou na fila dos transplantes paulista em 2005. "Até outubro do ano passado, no entanto, o pessoal de São Paulo não era capaz de me dar uma previsão de quando chegaria a minha vez de ser operada." A expectativa é que ela receba um novo fígado em julho, no máximo. Assim como Olga, 10% dos 100 pacientes na lista catarinense são "estrangeiros". Até cinco anos atrás, Santa Catarina era apenas mais um estado brasileiro a sofrer com a falta de doadores e as dificuldades de captação e distribuição de órgãos. Em 2004, o número de doadores era de sete por milhão de habitantes, o equivalente à média brasileira. A reviravolta começou a partir do momento em que os coordenadores da central de transplantes decidiram colocar equipes especializadas em captação de órgãos nos hospitais com centros de neurologia, justamente para onde são encaminhados os pacientes em morte encefálica. Determina a lei federal que todo hospital com mais de oitenta leitos deve ter uma comissão com foco na doação. Hoje, em Santa Catarina, 90% dos hospitais com serviço de neurologia contam com um grupo de profissionais treinados em captação de órgãos – independentemente do número de leitos. Além disso, a maioria dos coordenadores dessas equipes são intensivistas. Faz todo o sentido. São os médicos das UTIs os primeiros a fazer o diagnóstico de morte encefálica de um paciente. Se eles estiverem engajados num programa de transplantes, dificilmente deixarão de comunicar a existência de um doador em potencial. Das mais de 10 000 mortes encefálicas registradas no ano passado no país, apenas a metade foi notificada. Em Santa Catarina, sete em cada dez diagnósticos de óbito são informados. Decretada a morte encefálica, o primeiro passo é informar a família e pedir autorização para a doação. Segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (Abto), apenas 1% dos parentes de eventuais doadores é abordado. "Muitos profissionais ainda ficam constrangidos em tocar nesse assunto, temendo aumentar o sofrimento da família", diz o cirurgião Sergio Mies, chefe da equipe de transplantes do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo. Geralmente, a solicitação é feita por uma pessoa com a qual os parentes não têm nem tiveram nenhum contato durante a internação – o que, num momento de luto, aumenta a probabilidade de recusa. Para diminuir esse risco, o sistema catarinense prevê que o contato entre a equipe de captação e os parentes do possível doador seja feito assim que ele entrar na UTI. "Paciência é a palavra de ordem", diz a enfermeira Solange Aparecida Ramos, uma das responsáveis pela abordagem familiar no Hospital Santa Isabel, em Blumenau. No início, os profissionais se colocam à disposição para esclarecer qualquer dúvida sobre a condição da pessoa internada. O passo seguinte se dá quando os médicos retiram a sedação do doente, a fim de constatar se o cérebro já está inativo. Durante esse processo, que dura, em média, seis horas, uma psicóloga procura os familiares para consolá-los. A palavra "doação" só é dita pela primeira vez doze horas mais tarde, quando todos os exames necessários para comprovar a morte encefálica foram concluídos. "É mais simples conseguir uma autorização de quem já nos conhece", diz a psicóloga Rosi Meri da Silva, do Hospital Santa Isabel. As estatísticas comprovam a importância de uma abordagem mais humanista. No último ano, a queda nos índices de recusa familiar em Santa Catarina foi de 53%. No resto do Brasil, de 37%. Autorização concedida, dá-se início a outra batalha: a de conservar os órgãos do paciente morto em condição de serem transplantados por meio de ventilação artificial, doses de medicamentos a intervalos regulares e litros e mais litros de soro. Do contrário, o organismo entra em falência cardiorrespiratória e os órgãos se deterioram por falta de oxigênio. Santa Catarina, mais uma vez, detém um dos melhores índices de manutenção de corpos para transplante. Lá, de cada 100 pacientes em morte encefálica, quase 80% se conservam em condições ideais para o transplante. Em São Paulo, o aproveitamento é de 60%. De um sistema eficiente, faz parte necessariamente a abnegação profissional – e a dos médicos, enfermeiros e psicólogos catarinenses chega a ser emocionante. Por incrível que pareça, a excelência nas cirurgias hepáticas foi conquistada pela única equipe de transplante de fígado existente no estado: a do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. Somente em janeiro passado foi criado um segundo grupo de especialistas nessa área, o do Hospital São José/Fundação Pró-Rim, em Joinville. Em 2008, no que se refere ao número absoluto de cirurgias, a equipe pioneira ficou atrás apenas de um dos melhores centros de saúde do país, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Os catarinenses fizeram 91 transplantes e os paulistas, 95. Um dos maiores responsáveis pela proeza é o cirurgião Mauro Igreja. Em companhia do motorista Carlão, a bordo de um Gol 2006, 89 000 quilômetros rodados, o médico zanza de um lado para outro do estado, num raio de até 300 quilômetros de Blumenau, na tarefa de captar os órgãos para transplante. Distâncias maiores são percorridas em helicópteros ou jatinhos. A dedicação de Igreja é tanta que ele faz questão de participar também do transplante dos órgãos captados. Em geral, o médico que capta não opera. Em setembro do ano passado, ele participou de dezesseis transplantes hepáticos e de mais dezesseis cirurgias para a retirada de órgãos. Saldo total: 100 horas num centro cirúrgico, duas multas por excesso de velocidade e dezesseis vidas salvas. |
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