Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 20, 2009

Os cadáveres Merval Pereira

O GLOBO

Têm a mesma origem a revolta dos contribuintes americanos com a farra em companhias financeiras, como a seguradora AIG, que pagaram bônus a seus executivos com dinheiro público, e a dos contribuintes brasileiros, mais uma vez abismados com os maus hábitos de seus congressistas, que se acostumaram a gastar o dinheiro público sem os freios do bom-senso. Depois que o senador Jarbas Vasconcellos subiu à tribuna para denunciar a corrupção que domina nossa vida política, e em especial o seu partido, o PMDB, desencadeou-se uma onda que se propaga até hoje, fazendo com que o senador José Sarney exclamasse não saber por que de repente resolveram tirar todos esses esqueletos do armário.

Seu espanto insinua que as denúncias ininterruptas fazem parte de um esquema político insatisfeito com sua vitória para a presidência do Senado, mas também revela como o hábito do cachimbo faz a boca torta.

São realmente velhos hábitos que estão sendo denunciados, e tanto espanta o senador petista Tião Vianna, derrotado por Sarney, ao saber que denunciam que emprestou um celular pago com o dinheiro do erário público para sua filha usar no México, quanto a filha de Sarney, a também senadora Roseana, que deu passagens pagas pelo Senado para parentes irem a Brasília.

São velhos hábitos repetidos por quase todos os senadores, ou deputados, de quase todos os partidos, e que somente agora são denunciados.

Como há muito tempo essa farra com os apartamentos funcionais existe e é denunciada pela imprensa, mas só de tempos em tempos essas denúncias encontram receptividade na opinião pública, e os políticos se espantam quando isso acontece.

Por isso, burocratas que há anos usavam indevidamente apartamentos funcionais, de repente veem-se na obrigação de devolvê-los, funcionários que sempre receberam hora extra sem trabalhar ficam constrangidos, políticos surpreendem-se com a indignação causada por seus castelos e mansões, que sempre estiveram onde estão e, de uma hora para outra, tornam-se estorvos a suas imagens públicas.

A negação da opinião pública, como virou moda no Parlamento e no governo brasileiros desde o mensalão, representa a tentativa de retroceder na história, de fazer prevalecer o atraso nas relações do Congresso com os eleitores.

Os muitos políticos que foram absolvidos pelo espírito corporativo no plenário da Câmara usaram a tática de convencer seus colegas de que o eleitorado que realmente importa na hora do voto, aquele majoritário, não é influenciado pelos "formadores de opinião" da mídia, que só conseguiriam ter força com uma elite intelectual, que não é mais capaz de transmitir como antigamente seu julgamento para as camadas populares.

O próprio presidente Lula, depois de se recuperar da crise do mensalão, vangloria-se de não necessitar da intermediação dos meios de comunicação para se comunicar com o eleitorado, e chega a comemorar que os "formadores de opinião" já não tenham tanta influência como antigamente.

Ao contrário, o presidente americano, Barack Obama, não titubeia: diz que recusa o clipping oficial e prefere ler os próprios jornais, chegando a descrever o prazer que lhe dá folheá-los.

E não se diga que este é um sentimento retrógrado de um político à moda antiga. Obama é aquele que introduziu os modernos meios tecnológicos de comunicação na campanha presidencial, o que se comunica com os eleitores através de torpedos eletrônicos e pelo twitter.

Quando, ainda candidato, defendeu um limite salarial para os executivos de companhias auxiliadas pelo governo, estava reverberando a opinião pública, mesmo que os especialistas considerassem a medida pura demagogia.

Obama, para os padrões americanos, é tão populista quanto Lula, e por isso foi beijar eleitores em uma pequena cidade atingida pelo desemprego quando quis forçar o Congresso a aprovar seu pacote econômico.

E é também por isso que trata o caso do pequeno Sean como prioridade para os Estados Unidos, mandando a secretária de Estado, Hillary Clinton, abordar a questão com o chanceler brasileiro, transformando em questão de Estado uma disputa pela guarda de uma criança de dupla nacionalidade.

É claro que há a legislação internacional, que está em jogo, mas nada justifica, a não ser o faro populista, que um presidente com tantos problemas pela frente dedique seu tempo a um caso como esse.

Lula fez a mesma coisa com a brasileira supostamente flagelada por nazistas suíços, mas o patriotismo exacerbado acabou com os burros n"água.

Pode ser que Lula continue infenso às críticas, mesmo mexendo no rendimento das cadernetas de poupança ou não cumprindo a promessa de aumento dos servidores públicos. E com a economia em recessão. Será um caso único a ser estudado pela ciência política.

Mas os demais políticos, meros mortais, continuarão tendo que prestar contas à opinião pública, essa entidade que surgiu no fim do século XVIII como maneira de as elites se contraporem à força do Estado absolutista, com a imprensa tendo papel fundamental na sua consolidação.

O surgimento da "opinião pública" está ligado ao surgimento do Estado moderno, e não é à toa que o senador José Sarney, conhecedor da história política brasileira e velho homem de imprensa, está tentando reagir com presteza à sucessão de denúncias, para não ser tragado por elas.

Essa disputa entre petistas derrotados pelo PMDB de Sarney ainda vai ter repercussões fortes na sucessão presidencial, e muitos outros cadáveres sairão dos armários.

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