Livros
O Bono da literatura
Criador da mais badalada revista literária dos Estados Unidos,
Dave Eggers também se dedica a construir escolas no Sudão
Jerônimo Teixeira
Stuart Price/AFP |
MENINOS PERDIDOS |
Dave Eggers, de 38 anos, é o maior agitador literário dos Estados Unidos. Não, ele não organiza abaixo-assinados para reivindicar que o governo financie o ócio criativo, como é de praxe no Brasil. Seu trabalho ocorre em duas frentes. Ele comanda a "grife cultural" McSweeney’s, que nasceu aplicada a uma revista e hoje engloba vários empreendimentos, como uma editora e um site de humor que vai do nonsense à sátira política. Eggers, além disso, é um filantropo. Um de seus colegas, o romancista Jeffrey Eugenides, já o chamou, sem ironia, de "o Bono da literatura". Tal como o vocalista do U2, ele tem vocação para se transformar em ONG. Filho de professores, dá atenção sobretudo a projetos voltados para a educação. Dirige um circuito de oficinas literárias para alunos de escolas públicas americanas – o 826 Valencia, que começou em São Francisco, em 2002, e já tem filiais em Nova York, Chicago e Los Angeles, entre outras cidades. Mais recentemente, organizou a Fundação Valentino Achak Deng, dedicada a educar crianças do Sudão, país africano devastado por décadas de guerra civil. E será que Eggers escreve em algum momento? Sim, escreve. Seu livro mais recente, O que É o quê (tradução de Fernanda Abreu; Companhia das Letras; 584 páginas; 62 reais), é a biografia romanceada de Valentino Deng, uma das centenas de milhares de pessoas atingidas pelos conflitos sudaneses, que sobreviveu, emigrou para os Estados Unidos – e emprestou seu nome à fundação de Eggers.
Eggers ganhou notoriedade com seu primeiro livro, de 2000, um misto de memória e ficção cuja ironia começava no título: Uma Comovente Obra de Espantoso Talento. A revista McSweeney’s já existia havia dois anos (o nome vem de um maluco que escrevia para a família de Eggers afirmando ser o irmão perdido de sua mãe), mas também ganhou impulso naquele momento. Publicou alguns dos novatos mais promissores da literatura americana, como Jonathan Safran Foer, ao lado de figurões como David Foster Wallace (morto no ano passado). Graficamente refinada, com muitos experimentos visuais e tipográficos, a revista tem lá seu pendor pós-moderno (com o perdão da palavrinha desgastada), embora Eggers o negue: "Publicamos todo tipo de escrita, da mais experimental à mais tradicional. Somos pluralistas devotos", diz. Entrar no radar da McSweeney’s hoje é desejo de todo escritor iniciante dos Estados Unidos – ou quase todo. Como é natural nos meios literários, já surgiram publicações de oposição a ela, como a revista de crítica n+1. Mas Eggers e sua turma fazem de conta que não veem. Agitação literária, para eles, não é sinônimo de polêmica. Não por acaso, The Believer, a revista de crítica do grupo, tem como diretriz publicar somente resenhas positivas.
Apesar de seu jeitão moderninho, Eggers, com o lançamento de O Que É o Quê, abraçou um aparente anacronismo: a literatura engajada. O livro pretende sensibilizar o público para o drama do Sudão – e consegue, sobretudo quando o leitor lembra que, artifícios romanescos à parte, aquela é a história real de Valentino Deng. Um dos chamados "meninos perdidos", ele teve os pais mortos na guerra civil sudanesa de 1983 e atravessou milhares de quilômetros a pé, em condições de privação extrema, até chegar a campos de refugiados na Etiópia e no Quênia. Deng sobrevive para dar seu testemunho e transmitir sua mensagem de um otimismo ingênuo. Em coro com Eggers, ele diz no final: "Eu estou vivo, e vocês estão vivos, então precisamos encher o ar com nossas palavras".
"O engajamento me energiza"
Na entrevista abaixo, Dave Eggers fala de literatura engajada e de seu empenho pelo Sudão
O senhor está empenhado em uma série de iniciativas. Isso não prejudica seu tempo para escrever?
Já tentei me isolar para escrever. Minha mulher e eu vivemos meses na Costa Rica, e depois na Islândia. Nos dois lugares, ficamos em cabanas sem telefone nem televisão. Acabei me sentindo desconectado do fluxo da vida. Cheguei a completar um romance, mas tive de descartá-lo – era muito solipsista. Estar engajado no mundo ajuda a manter a minha sanidade. E me torna um escritor melhor – ou, pelo menos, assim espero.
O Que É o Quê, o romance, pode ser encarado como uma volta à "literatura engajada"?
Sim. É claro que existe espaço para os não-engajados, mas eu tiro minha energia da ideia de uma littérature engagée. Nos Estados Unidos, ouvimos muita gente proclamando a morte do romance e a irrelevância da literatura em uma sociedade saturada pela mídia, mas nada dis-so é verdade.
Não é ingenuidade acreditar que os livros possam salvar as pessoas de catástrofes humanitárias como a do Sudão?
Eu não acho que as narrativas vão nos salvar, mas elas podem nos ajudar a entender a alma das pessoas que sofrem com esses desastres. Antes dos livros de Khaled Hosseini, ninguém nos Estados Unidos sabia muito sobre o Afeganistão. Mas Hosseini, em seus livros, conseguiu humanizar o povo afegão. Esse foi o meu intuito com O Que É o Quê: permitir que o leitor visse os conflitos no Sudão de outra perspectiva.