Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 05, 2014

Um domingo em outubro - Fernando Gabeira Jornal O Globo

Um domingo em outubro - Jornal O Globo

O Globo

Hoje não é apenas um dia perdido no tempo. Quando menino, acompanhava as eleições a uma certa distância: Dutra, o Brigadeiro, até mesmo Lott e Jânio eram para mim matéria de jornal. Não os conhecia nem acompanhava suas peripécias de campanha. Já as eleições na abertura democrática, acompanhei todas, algumas de muito perto. Agora, distanciei-me de novo, mas, certamente, vou limpar e lubrificar minha bicicleta azul marinho, cruzar e Lagoa e cumprir meu dever.

Quando começou a campanha, ainda vivi um pouco de suas emoções. Todas as noites, quando ia comprar pão na padaria, um grupo numa mesa de botequim gritava: deputado, senador, estimulando minha entrada na corrida eleitoral. Uma vez, chegaram a gritar presidente. Mas foi num dia em que perdi a fornada das sete e saí um pouco mais tarde para buscar o pão. Naquela altura, já haviam bebido algumas doses a mais.

Com o tempo, toda a minha carreira foi se desmontando e acabei sendo apenas o vizinho que vem comprar o pão com uma sacola vinho e, às vezes, para, diante da padaria, para ver o futebol na televisão.

Quando disputava campanhas, acordava cedo no domingo e percorria a cidade num carro aberto. Era tudo muito animado, exceto quando entrávamos no túnel. Ali, abraçado com a bandeira, sem ninguém para acenar, sentia-me inútil e patético.

Recomendo a quem esteja em crise vocacional na política que desfile em carro aberto por um túnel. O trecho é pequeno, mas o ritmo das associações, alucinante.

Estar fora da campanha não me livra das preocupações com o Brasil, às vezes tão alheio à pedreira que nos espera nos próximos anos.

Na eleição de Collor, resolvi ir embora. Berlim. Tive a oportunidade de ver a Alemanha se unindo, a antiga Iugoslávia se dilacerando em guerras, o império soviético desabando no Báltico.

Agora, um quarto de século depois, não tem mais isso de ir embora. Acostumei a viver num país cuja lógica me escapa. Quando ouvi o discurso da Dilma na ONU pensei: não acredito que esteja propondo diálogo com o Estado Islâmico que corta cabeças, filma e divulga.

De uma certa forma isso passou em branco. A importância que dou ao tema não é a mesma de uma campanha presidencial no Brasil. Política externa não dá voto. Ponto.

É provável que Dilma não conheça o grupo terrorista. As campanhas são muito envolventes, quase não deixam tempo para o que se passa no mundo. Se Dilma encontrasse o líder dos cortadores de cabeça, Abu Bakr al-Baghdad, no metrô, talvez o convidasse para comer uma esfirra.

Só num quadro de humor é possível imaginar negociação com os terroristas. Se ela mesma quisesse tentar, talvez conseguisse a dispensa do véu, mas iria cruzar o deserto trazendo na bandeja a única mensagem que sabem enviar ao mundo: uma cabeça cortada. Como encarar o futuro do país nas mãos de uma ingênua Salomé, cercada por um aparato monolítico de burocratas que não levam a sério a imagem do Brasil, porque o importante é apenas vencer as eleições?

Com os escritores cubanos aprendi algo que expressei no prefácio do livro do Raúl Rivero, um poeta exilado na Espanha. Quase todos os grandes artistas cubanos mantiveram a vida amorosa a salvo da dominação burocrática. Nunca deixaram a chama erótica e paixão pelo seu povo serem enquadradas pelo regime.

Com os tchecos, percebi a força do humor, uma das maneiras de enfrentar a lógica cinzenta dos burocratas. Eles tinham uma generosa tradição literária. Do "Bravo soldado Schweik" ao "Processo" de Kafka, a Praga do início do século já refletira de forma cômica e trágica a relação do indivíduo com o Estado.

Valorizar a vida amorosa e o senso de humor é a melhor reação ao resultado das urnas. O resto são as tarefas cotidianas, o trabalho duro, a tentativa de continuar argumentado, sem superestimar o intercâmbio racional.

Uma vitória do PT, creio, não pode ser atribuída apenas à sua capacidade de mentir e atacar. Não se deve nunca acusar o adversário pela própria derrota. Se não for possível resistir aos ataques e mentiras do PT, isso significa que vão ficar, eternamente, no poder. Por que mudariam de tática?

Os marqueteiros e os amigos dos marqueteiros vão dar a impressão de que tudo nasceu de suas cabeças mágicas. Minha sensação, nesse dia decisivo, é que a maioria sabe o que se passa e vai escolher de acordo com o que sabe. A maioria sabe que o bloco do governo se transformou num grupo de assalto. Provavelmente, ela prefere não ser assaltada. Os votos da oposição somados devem ultrapassar os votos de Dilma.

Isso levaria a decisão para outro domingo. Mas o quadro permaneceria aberto, porque uma outra avaliação entra em cena. Quem pode alterar esse cenário de estagnação econômica, degradação política, tensão social? Perdi três bicicletas, roubadas nos últimos anos. Cada vez que inicio uma jornada, olho para a máquina como se fosse a última vez. Mas esse será um domingo cívico. Espero voltar ao tema, num outro domingo, com a mesma bicicleta.



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