O GLOBO
Não se discute aqui quanto deve ganhar um juiz, se o aumento é justo ou não. Trata-se da forma — e a forma é essencial no Direito
O empregado é enviado por um período ou é transferido de vez para trabalhar em outra cidade. É razoável que receba um auxílio-moradia. Mudar é caro, e, por um certo tempo, a família fica morando em duas casas, com despesas dobradas. A empresa paga então um benefício extraordinário, até que o funcionário arrume sua nova residência. O benefício varia conforme os custos da cidade. Certo?
Errado, decidiu o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. Para ele, todo juiz tem o direito fundamentado de receber todo mês e durante toda a carreira um auxílio-moradia mensal, no valor de R$ 4.377,73, esteja ou não de mudança, pague ou não um aluguel, gaste ou não com despesas de moradia propriamente ditas.
Então não é auxílio, dirá o leitor, trata-se de uma parte do salário. Inclusive porque o valor é o mesmo, quer o juiz more na caríssima Rio de Janeiro ou na mais barata cidade de Itapipoca, no interior do Ceará.
Lógico?
Errado de novo. Acontece que, se for considerado e concedido como salário, aquele auxílio entra como salário. Parece esquisito?
E é mesmo, mas só para quem desconhece o clássico jeitinho salarial, praticado amplamente no setor público e agora de novo consagrado na Suprema Corte. Se integrados tecnicamente, digamos, ao salário, aqueles quatro mil e quebrados farão com que o vencimento dos juízes estoure o teto a que estão submetidos os funcionários públicos. Além disso, reajuste salarial tem de ser aprovado pelo Congresso. Já um auxílio, uma ajudazinha...
Não é difícil arrumar o complemento. A imaginação criadora do setor já criou pérolas, como o auxílio-paletó — para comprar um terninho, pessoal, já que o funcionário tem que se apresentar corretamente — ou o pé na cova, um adicional pago quando o servidor chegava perto da aposentadoria.
Funciona sempre do mesmo jeito: um jeitinho para promover um aumento salarial não concedido pelo Congresso e que escape do teto. Claro que exige uma reinterpretação dessa outra palavra.
Qualquer um entende o que é teto salarial. Se o teto do funcionalismo é o salário do presidente da República, qualquer um entende o que isso quer dizer: nenhum servidor pode ganhar mais que o presidente.
Certo?
Não é tão simples assim, diz a Suprema Corte. O que é salário? O que é benefício pessoal? Auxílio entra no teto?
Reparem que tem lógica. Se o empregado recebe um auxílio para morar em outra sede, isso obviamente não é salário, mas um ganho eventual, para uma despesa determinada. Se o governo paga o táxi para o juiz ir até uma audiência, isso não é salário, é verba indenizatória, não é mesmo?
Vai daí que se arranja um auxílio qualquer coisa e está dado o aumento. O passo seguinte é dispensar a comprovação da despesa — terno, funeral ou moradia — para a qual o tal auxílio foi concedido.
Por isso, de tempos em tempos, o Congresso, sob pressão, aprova uma lei dizendo mais ou menos o seguinte: OK, pessoal, os quebra-galhos arranjados até agora estão consagrados, está tudo incorporado aos vencimentos, mas é a última vez, hein!?, daqui em diante, teto é teto.
Reparem: não se discute aqui quanto deve ganhar um juiz, se o aumento é justo ou não. Trata-se da forma — e a forma é essencial no Direito. O quebra-galho gera uma distorção infinita. E uma despesa infinita.
Querem ver? Diz a decisão que o auxílio-moradia dos juízes vale a partir de agora. Mas, se é um direito fundamentado, como diz o ministro Fux, então por que só valeria a partir de agora? Direito tem data? Podem apostar: se já não entraram, alguém vai entrar na Justiça pedindo os retroativos. E vai ganhar.
Por outro lado, se o juiz tem direito a auxílio-moradia sem precisar justificar o gasto determinado e sem contar para o teto, por que não o tem o médico do SUS, esteja em qualquer cidade? E o policial federal? E os professores?
Os juízes arranjaram esse auxílio- moradia porque não conseguiram equiparação com os vencimentos dos procuradores da República. Foi um arranjo, ou uma distorção, como comentou o também ministro do Supremo Gilmar Mendes. O certo, diz ele, seria a simetria salarial da Magistratura com o Ministério Público.
Vão acabar conseguindo, quando os procuradores buscarão, então, um aumento para repor as condições anteriores.
E assim segue. Com uma diferença: só algumas categorias de funcionários conseguem montar seus quebra-galhos. O poder do jeitinho salarial é um privilégio de poucos.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista