Um míssil no pé de Putin
O Estado de S.Paulo
19 Julho 2014 | 02h 04
Embora nenhuma hipótese tenha sido descartada de antemão para a queda do Boeing 777 da Malaysia Airlines com 298 pessoas a bordo - a poucas dezenas de quilômetros da fronteira da Ucrânia com a Rússia -, a mais plausível é a do disparo de um ou mais mísseis terra-ar por forças separatistas pró-russas, ativas na região, como afirmam os Estados Unidos. Não terá sido a primeira vez que um jato comercial é abatido por engano. Em 1988, foguetes americanos lançados do Golfo Pérsico derrubaram um avião da Iran Air que ia de Teerã para Dubai com 274 passageiros e 16 tripulantes. A aeronave foi confundida com um aparelho militar. Em 2001, a Ucrânia provocou a queda de um avião da Sibéria Airlines que partira de Tel-Aviv para a cidade russa de Novosibirsk, transportando 66 passageiros. O jato foi atingido por disparos durante um exercício militar.
Desta vez, nada indica tampouco que, ao cruzar o leste da Ucrânia, o voo da Malaysia de Amsterdã para Kuala Lumpur tenha sido alvejado propositalmente. De mais a mais, não há registro de movimentos armados ucranianos ou russos, em ambos os lados da fronteira, na hora da tragédia. Há indícios, porém, de que os separatistas atacaram o avião acreditando pertencer à Força Aérea da Ucrânia. Na quarta-feira, véspera do episódio que desde já faz mudar de figura o confronto indireto entre Moscou e Kiev, os separatistas acertaram um caça SU-25 ucraniano. Na segunda, haviam derrubado um AN-26 de transporte militar. Além disso, pouco depois do ocorrido, os serviços de inteligência da Ucrânia grampearam uma conversa telefônica de um dos líderes das milícias rebeldes, Igor Bezler, em que ele anuncia que seus homens "abateram um avião".
Os separatistas alegam não serem capazes de atingir um avião, como o da Malaysia, a 10 mil metros de altitude. Já os aparelhos militares visados, voando a cerca de 4 mil metros, estavam ao alcance de mísseis até mesmo portáteis. As evidências parecem desmenti-los. Em 29 de junho, num ataque contra uma base do Exército nas proximidades de Donetsk - o principal foco dos combates na área -, os separatistas capturaram, e fizeram praça disso, um lançador de foguetes Buk (ou SA-11, na designação americana), concebido pela Rússia e fabricado também na Ucrânia, com quatro unidades e um sistema de radar. O equipamento, já não bastasse o seu raio de ação, é de fácil manejo. Kiev confirma que os rebeldes têm a arma, mas prefere sustentar que foi fornecida pelos russos. É uma forma de explorar a verdade de que, sem o seu incentivo, a rebelião teria murchado.
Nesse sentido, o presidente Vladimir Putin é o responsável moral pelas quase 300 mortes de civis inocentes. (O que não impede que se constate a irresponsabilidade das empresas aéreas que até anteontem voavam sobre a região conflagrada como em céu de brigadeiro.) Putin não sossegou desde que três meses de irreprimíveis protestos populares puseram em fuga, em fevereiro passado, o presidente constitucional da Ucrânia, o pró-russo Viktor Yanukovich - porque, sob o chicote e o afago de Moscou, ele se recusou a assinar um acordo comercial que aproximaria o país da União Europeia. Putin anexou a Crimeia à Federação Russa (a que pertencera historicamente) e fomentou o separatismo nas áreas de etnia russa, municiando os rebeldes. Uma Ucrânia apequenada é essencial ao seu projeto de restauração da potência russa.
Duas rodadas de sanções impostas pelos Estados Unidos e a União Europeia - a segunda, desta semana, atingindo o crucial setor energético russo e a sua proveitosa indústria bélica - tiveram como resposta declarações beligerantes. Pouco antes, a propósito, Putin conseguira emplacar na Declaração de Fortaleza, subscrita pelos cinco líderes dos Brics que ali se reuniram, uma condenação a sanções econômicas "em violação ao direito internacional", ou seja, não aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU. Agora, além dos castigos, a derrubada do avião da Malaysia - um míssil no pé do patrocinador da insurgência ucraniana - é um fardo do qual ele não terá como se livrar. Resta saber até onde irá o agravamento da hostilidade entre a Rússia e o Ocidente. A resposta depende, acima de tudo, do autocrata do Kremlin.
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