Gol de ficha-suja
- O Estado de S.Paulo
21 Julho 2014 | 02h 03
Os brasileiros, mais uma vez, podem sentir a mordida da frustração. Fruto de iniciativa popular, com mais de 1 milhão de assinaturas de apoio, a Lei da Ficha Limpa era um fio de esperança. A vida, no entanto, mostra o longo caminho que separa o mundo legal da realidade concreta.
Um dia depois de ser pela segunda vez condenado num escândalo de corrupção, o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (PR) afirmou que manterá sua candidatura ao governo. Arruda pôs em dúvida decisões judiciais e novamente se colocou como vítima de perseguição política. Segundo ele, as denúncias de arrecadação e distribuição de propina gravadas em dezenas de vídeos são parte de um golpe articulado pelo delator da corrupção, seu ex-secretário Durval Barbosa.
O ex-governador foi condenado no ano passado por comprar o apoio da deputada federal Jaqueline Roriz (PMN-DF). Pelo acordo, Jaqueline receberia dinheiro para campanha e em troca não pediria votos para Maria de Lourdes Abadia, adversária de Arruda nas eleições de 2006. Jaqueline teria recebido R$ 100 mil, telefones Nextel e ajuda em estrutura de informática. O pagamento pela traição foi um dos vários casos de distribuição de dinheiro filmados por Barbosa, ex-secretário de Assuntos Institucionais. Num dos vídeos, o próprio Arruda aparece recebendo um pacote de dinheiro de Barbosa, réu confesso e delator do chamado mensalão do DEM. Alegou, então, que o dinheiro se destinava a comprar panetones para os pobres.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve a condenação de Arruda e da deputada Jaqueline Roriz por atos de improbidade administrativa. Seria, nos termos da Lei da Ficha Limpa, o suficiente para que ambos se tornassem inelegíveis no pleito deste ano, não fosse um detalhe: o lapso de tempo. A condenação foi confirmada pelo colegiado somente depois de os políticos terem registrado suas novas candidaturas ao governo do Distrito Federal e ao Legislativo. De acordo com o entendimento corrente nos tribunais, para produzir efeitos neste ano a decisão precisaria ter sido proferida antes das inscrições na Justiça Eleitoral. A favor de Arruda pesou um recurso que suspendeu o andamento da ação. Embora revertido no Supremo Tribunal Federal, o ato forçou a Justiça de Brasília a adiar o julgamento do ex-governador. Firulas processuais são as armas de combate da impunidade. Recursos, prazos e lapsos temporais, habilmente manipulados por advogados experientes e bem pagos, transformam a Lei da Ficha Limpa numa bela parola.
O Judiciário, como um dos Poderes do Estado, deve fazer frente às demandas da sociedade. O momento exige que, além de combater a morosidade processual, a Justiça dê prioridade de julgamento a processos importantes nas seguintes áreas: combate à corrupção, defesa do patrimônio público e julgamento de autoridades com foro privilegiado. Como lembrou recente editorial do jornal Folha de S.Paulo, será preciso contornar grandes deficiências apresentadas pela Justiça Eleitoral. No início da campanha, os tribunais regionais dedicados ao tema ainda tinham déficit de 38 juízes; na Região Sudeste, 38% das vagas não estavam preenchidas, sobretudo por atrasos no processo de nomeação de advogados para postos nessas Cortes. Ademais, diante do grande número de instâncias a serem consultadas para verificar se há processos que possam causar inelegibilidade - somente o Ministério Público Federal oficiou a 6 mil órgãos -, parece escasso o prazo de cinco dias para que partidos e procuradorias eleitorais ajuízem ações.
Além disso, alguns setores do Judiciário evidenciam notável dificuldade de captar a gravidade da situação brasileira. O que se espera da Justiça não é apenas que seja uma zelosa aplicadora da lei. Isso é muito, mas é pouco. O que se espera dos nossos magistrados é uma fina capacidade de discernimento, uma delicada sensibilidade para fazer justiça. Estou convencido de que a gravíssima epidemia de corrupção está a exigir uma corajosa revisão de rotineiros e cristalizados procedimentos. Ou o Judiciário compreende a gravidade da situação e a força da demanda social ou será atropelado.
A dúvida, estou certo, não é se a reforma modernizadora do Judiciário e das leis será ou deixará de ser feita. Mas se será feita no âmbito do sistema democrático ou sob um regime autoritário. A Venezuela está aí e deveria servir de escarmento. O povo manifesta crescente e perigosa descrença na capacidade de fazer justiça do Estado. O formalismo jurídico sem vida pode matar a democracia. O que se quer não é a implementação da justiça à margem da lei e do direito de defesa, e sim um Legislativo e um Judiciário que saibam dar resposta à demanda da sociedade contra a recorrente e vergonhosa impunidade.
A imprensa está cumprindo o seu papel. Sucessivas matérias desnudando autênticas redes de corrupção instaladas no coração dos Poderes da República têm desencadeado uma irreprimível onda de decência. A Polícia Federal, não obstante os abusos que devem ser coibidos, tem feito um bom trabalho. Um balanço sereno mostra que o saldo de suas operações tem sido muito mais positivo que negativo para a democracia. O Ministério Público tem contribuído na luta contra os predadores do interesse público. É claro que devemos combater os riscos do prejulgamento que podem advir de uma declaração precipitada e pública de um promotor estampada em manchete de jornal. Mas isso não pode gerar omissões e covardias funcionais. A corrupção é um câncer que deve ser enfrentado por todos: jornalistas, promotores, policiais, juízes e cidadãos.
A Lei da Ficha Limpa não pode morrer na praia.
CARLOS ALBERTO DI FRANCO É DOUTOR EM COMUNICAÇÃO PELA UNIVERSIDADE DE NAVARRA, É DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO DO INSTITUTO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS. E-MAIL: DIFRANCO@IICS.ORG.BR
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