O Estado de S. Paulo - 04/08/2011
Franschhoek, cidade de vinhedos e alta cozinha na província sul-africana do Cabo Ocidental, é o núcleo cultural dos descendentes dos huguenotes franceses que emigraram para a Colônia do Cabo após a revogação do Edito de Nantes, em 1685. Esses refugiados da perseguição religiosa se somaram aos também calvinistas holandeses estabelecidos na região para configurar a colonização bôer na África do Sul. Eles adquiriram escravos, se insurgiram contra a abolição da escravidão promovida pelos britânicos em 1833, participaram do Grand Trek que resultou na fundação das colônias africânderes do interior e ajudaram a sustentar as leis do apartheid, introduzidas a partir de 1949. Desde 1789, até hoje, Franschhoek celebra a Revolução Francesa, que derrubou a monarquia católica dos Bourbons.
Liberdade, para eles, significava as liberdades de falar com Deus segundo suas próprias regras e de possuir escravos. Igualdade significava, exclusivamente, o estatuto de equivalência de direitos religiosos com os católicos consagrado pelo Edito de Nantes. Não se tratava da igualdade dos indivíduos perante a lei, mas da igualdade de direitos entre distintas comunidades religiosas cristãs. Nessa acepção, a igualdade pressupunha a diferença: os nativos africanos não teriam prerrogativas de cidadania, pois não eram cristãos.
Igualdade significa coisas diversas em sociedades diferentes. Breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará uma ação contra o programa de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB). O veredicto terá repercussões que transbordam largamente os limites do sistema de seleção de candidatos à UnB: estará em jogo o significado do princípio da igualdade no Brasil. A Constituição é cristalina, traduzindo a igualdade como equivalência de direitos de cidadania, independentemente de cor, raça, sexo ou crença. O sistema de cotas raciais implica a negação disso e sua substituição por um conceito de igualdade entre comunidades raciais inventadas. Mas há indícios consistentes de que o tribunal pode votar pela anulação de um dos pilares estruturais da Constituição.
O regime do apartheid costuma ser descrito como um Estado policial semifascista devotado a promover a exclusão política dos negros. De fato, ele também foi isso, mas seu traço essencial era outro. Os fundamentos doutrinários do apartheid emanaram do pensamento dos liberais Wyk Louw e G. B. Gerdener, da Universidade de Stellenbosch, que propugnaram a segregação de raças como imperativo para a manutenção da liberdade dos brancos e das culturas dos nativos. Louw e Gerdener conferiram forma acadêmica às ideias de Jan Smuts, comandante das forças africânderes na Guerra dos Bôeres de 1899-1902. Smuts promoveu a reconciliação entre os africânderes e os britânicos, antes de se tornar primeiro-ministro do país unificado. Em 1929, numa conferência proferida em Oxford, ele delineou o sentido da "missão civilizatória" dos brancos na África Austral: "O Império Britânico não simboliza a assimilação dos povos num tipo único, não simboliza a padronização, mas o desenvolvimento mais pleno e livre dos povos segundo suas próprias linhas específicas".
Louw e Gerdener devem ser vistos como precursores do multiculturalismo. Eles criticavam as propostas de criação de uma sociedade de indivíduos iguais perante a lei, que representaria a "assimilação dos povos". No lugar da "padronização" política e jurídica, sustentavam a ideia de direitos iguais para grupos raciais separados. O grupo, a comunidade racial, não o indivíduo, figuraria como componente básico da nação. É precisamente esse conceito que alicerça o sistema de cotas raciais.
Na UnB, um candidato definido administrativamente como "negro" por uma comissão universitária tem o privilégio de concorrer às vagas reservadas no sistema de cotas. Mesmo se proveniente de família de alta renda, tendo cursado colégio particular e cursinho pré-vestibular, o candidato "negro" precisa de menos pontos para obtenção de vaga do que um candidato definido como "branco", mas oriundo de família pobre e escola pública. Na lógica da UnB, indivíduos reais não existem: o que existe são representantes imaginários de comunidades raciais. O jovem "negro" funciona como representante dos antigos escravos (mesmo que seus ancestrais fossem traficantes de escravos). O jovem "branco" funciona como representante dos antigos proprietários de escravos (mesmo que seus ancestrais tenham chegado ao Brasil após a Abolição). Se o STF ornar tal programa com seu selo, estará derrubando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
O apartheid fincava raízes nas diferenças de língua e cultura entre os grupos populacionais sul-africanos. A classificação étnica dos indivíduos, seu requisito indispensável, derivava de realidades inscritas no passado e refletidas na consciência das pessoas. O projeto da "igualdade racial" no Brasil, cujo instrumento são os programas de cotas, exige uma fabricação acelerada de comunidades étnicas. As pessoas precisam ser transformadas em "brancos" ou "negros", a golpes de estatutos administrativos impostos por órgãos públicos e universidades. Todo o empreendimento desafia a letra da Constituição, que recusa a distinção racial dos cidadãos. O STF está perto de escancarar as portas para o esbulho constitucional generalizado.
Seria o STF capaz de corromper escancaradamente o princípio da igualdade dos indivíduos perante a lei? A Corte Suprema é um tribunal político, no sentido de que sua composição reflete as tendências políticas de longo prazo da Nação. Há oito anos o lulismo aponta os novos integrantes da Corte. O STF rejeitou a mera abertura de processo contra Antônio Palocci, que, como agora reconhece a Caixa Econômica Federal, deu ordem para a violação do sigilo bancário de Francenildo Costa. Os intérpretes da Constituição não parecem preocupados com a preservação do princípio da igualdade.
Entrevista:O Estado inteligente
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