está sendo jogada muito mais nas negociações entre o Cairo e
Washington do que na Praça Tahrir, embora os 11 dias de manifestações
contrárias ao regime ditatorial sejam a base dos movimentos
estratégicos no tabuleiro político internacional.
Sem a Praça Tahrir não haveria condições, nem necessidade, para uma
mudança de governo. Embora a mudança, que parece inevitável, seja na
direção de uma visão de mundo que o presidente dos Estados Unidos
Barack Obama defende desde sua eleição, é quase certo que ele não
correria esse risco se não fosse empurrado pelas ruas egípcias.
A crise egípcia se transformou em oportunidade, e Obama quer
aproveitá-la para espalhar conceitos democráticos pela região.
O comentário de Mubarak sobre Obama, de que ele é "um homem bom", mas
não conhece a "psicologia" do povo egípcio, é a conversa de um
político ultrapassado pelos acontecimentos com um que quer se conectar
com a nova onda que vem da juventude egípcia, através do Facebook e do
twitter.
Essa mudança fundamental de visão de mundo, que Obama trouxe para o
governo dos Estados Unidos, mas está tendo dificuldades para colocar
em prática, é que está em risco nessa empreitada do Egito: o diálogo
no lugar da força, a visão multipolar no lugar da hegemonia.
Obama parece já ter entendido que os interesses americanos só serão
atendidos se o interesse da comunidade internacional for também
respeitado.
Enquanto o presidente Bush alegava querer disseminar a democracia pelo
mundo utilizando guerras para impor o regime, Obama quer mostrar as
vantagens da democracia através do exemplo e do respeito ao outro.
Uma abertura maior para o mundo, transformar os Estados Unidos em um
país amado, e não temido, é o conceito que pode ser tragado pela crise
nos países árabes se o resultado dessa série de reivindicações nas
ruas por mais liberdade e mais direitos individuais não desaguar em
governos democráticos naquela região conturbada do mundo.
Ontem, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, já tentou
politizar as manifestações chamando as revoltas populares na Tunísia e
no Egito de "sinal do despertar islâmico", embora até o momento não
haja nenhum indício de que as revoltas tenham alguma conexão com
movimentos radicais islâmicos.
Se há um político que se sinta bem nesse novo mundo tecnológico, no
qual a sociedade global tem agora os meios para exprimir seus anseios
e suas convicções independentemente das instituições políticas e do
sistema de comunicação de massa, esse é Obama, que se apresentou ao
eleitorado americano, e também ao mundo, através do uso intensivo do
twitter e da internet, e sabe desde então o alcance desse novo
instrumental, que desde sua eleição foi acrescido da nova força das
redes de relacionamento social.
Essa nova maneira de preencher o vazio de representação com a
interação com a sociedade civil, foi o que legitimou a ação política
de Obama, ancorado nas mobilizações espontâneas usando sistemas
independentes de comunicação.
Foi também desse espaço público que surgiram as manifestações de rua
tanto na Tunísia quanto no Egito e em outros países árabes.
E os novos meios de comunicação como instrumentos de mobilização e
meios de debate, diálogo e decisões coletivas, foram o que conseguiram
unir tantos interesses dispersos pela sociedade egípcia, pegando de
surpresa até mesmo os serviços secretos dos governos democráticos,
como a CIA dos Estados Unidos, muito criticada pelo Congresso
americano por não ter antecipado o que poderia acontecer.
Tudo indica que não foram apenas os serviços secretos dos governos
autoritários os enganados pelas conexões do Facebook e do Twitter.
Todos eles parecem estar montados para prevenir e reprimir movimentos
políticos organizados por partidos e entidades reconhecidos pelo
establishment, ou de movimentos criminosos conhecidos, e não estão
preparados para detectar os movimentos mais profundos vindos da
sociedade civil.
O governo dos Estados Unidos tem pela frente uma chance de ouro de
colocar em prática as teorias do "poder inteligente" ("smart power"),
defendido pela secretária de Estado americana, Hillary Clinton, ao
assumir o posto, que seria uma terceira via além dos poderes militar e
econômico.
Esse poder pode ser cultivado através de relações com aliados,
assistência econômica e intercâmbios culturais, o que resultaria em
uma opinião pública mais favorável e maior credibilidade externa dos
Estados Unidos.
Neste mundo em que novos polos de poder surgem, Barack Obama parece
concordar com a tese de que o poder dos Estados Unidos hoje depende
muito mais de seu "soft power" do que de seu poderio militar ("hard
power"), que causou estragos à imagem do país.
Responder às reivindicações das ruas árabes ajudando a implantar os
valores democráticos naqueles países evitaria, por exemplo, que
terroristas recrutassem apoio entre as maiorias moderadas, e
encurtaria o espaço político de grupos radicais como a Irmandade
Muçulmana em um futuro governo de coalizão nacional.
As fontes do "soft power" seriam a cultura, os valores, estimulados
internamente pelo exemplo - como o respeito aos direitos humanos - , e
políticas inclusivas.
Um "poder inteligente" investe em bens públicos mundiais, promovendo o
desenvolvimento, melhorando a saúde pública e lidando com a questão
climática.
Também estaria nessa linha a promoção dos direitos humanos e a
democracia, mas pelo exemplo, e não pela imposição.
Por isso a administração Obama se dedica a conseguir um acordo que
instale no Egito um governo de transição que leve a eleições livres e
democráticas o mais rápido possível.
O risco é colocar em perigo a estabilidade política na região, o que
levará Obama a ser culpado pelo desequilíbrio que porventura daí
advier para a situação no Oriente Médio, que se baseia no acordo de
paz com Israel bancado por Mubarak no Egito.
FONTE: O GLOBO