Os momentos revolucionários são mágicos, contagiantes e belos. O povo
egípcio mereceu o dia de ontem. Foram longos 18 dias de persistência
que hipnotizaram o mundo. Nada os deteve: nem o longo tempo, nem a
violência da repressão, nem as manobras do ditador. A Praça Tahrir
mudou o Egito, mas mudou também Washington. Agora, começa o perigoso
momento seguinte.
O vigoroso discurso de ontem do presidente Barack Obama, inspirado e
convocando heróis da luta pacífica como Martin Luther King,
descrevendo com paixão as cenas que o mundo viu, foi uma forte
demonstração de como Cairo mudou Washington. Obama em dois anos
manteve uma política externa conservadora, sem grandes sinais de
mudança em relação ao que havia antes. E sim, ele podia ter mudado
mais. Deve ser constrangedor para a secretária de Estado, Hillary
Clinton, rever o que ela mesma disse poucos dias atrás sobre ser um
governo estável de um aliado confiável, a ditadura de Mubarak. Apenas
um pouco menos constrangedor do que para o primeiro-ministro francês,
François Fillon, a sua imagem voando nas mordomias do avião de
Mubarak.
Quando Saddam Hussein caiu, era o governo de Washington impondo sua
hora ao povo iraquiano. Era um ditador a menos, e ninguém vai
lamentá-lo. Mas foi preciso passar por cima dos relatórios da ONU,
conduzidos por Mohamad El-Baradei - sempre ele -, para sustentar que o
governo do Iraque tinha o que ele não tinha: armas de destruição em
massa. A guerra iraquiana ainda não acabou e nunca houve grandes
esperanças sobre as mudanças de Bagdá. No Egito, a mudança vem de
dentro, é genuína e tem chances de ser duradoura.
As cenas fortes do confronto na ponte, da força da Praça Tahrir, do
dramático ataque a cavalos e camelos dos policiais de Mubarak, das
adesões de militares ao movimento, da onipresente bandeira egípcia
ficarão por muito tempo nas lembranças do mundo. Mas depois da festa
de ontem começará a volta ao normal.
Os próximos passos são essenciais. De agora em diante todo o cuidado é
pouco. Há perigo na esquina. Vários perigos. Os militares podem querer
permanecer no poder, do qual, na verdade, nunca se afastaram. O
governo de Hosni Mubarak foi um regime militar misturado com uma
ditadura pessoal. Seu poder vinha das Forças Armadas financiadas e
mantidas pelo poder do forte subsídio americano. Ainda há ambiguidades
dentro do sistema. Eles precisam do dinheiro americano e dos
privilégios que construíram ao longo dessas décadas. Não vão querer
abrir mão deles. E, dependendo do que pretendam fazer, pode ser o
inicio de mais instabilidade.
O povo vai se recolher para seu merecido descanso depois da vitória,
como sempre acontece. E ainda não é a hora. A forma da transição não
está resolvida e ela tem que conter alguns ingredientes
indispensáveis: suspensão da lei de emergência, o AI-5 deles, que está
em vigor desde 1981; dissolução do Parlamento eleito de forma
fraudulenta; governo de transição com representação civil para
garantir que as eleições serão mesmo livres e limpas.
Na economia, há muito a fazer. As últimas semanas deixaram sequelas.
Houve muita fuga de capital, muito investimento adiado, muita produção
parada, muito negócio cancelado. Será preciso retomar a atividade
normal. Amanhã, a Bolsa do Cairo abre depois de duas semanas fechada.
E a economia começará lentamente a reconstrução. Mas é bom lembrar que
alguns problemas ajudaram a fomentar a revolta, como o forte
desemprego entre os jovens e a alta de preços dos alimentos. Nada
disso desaparecerá de uma hora para outra. E se eles não começarem a
ser enfrentados será inevitável o sentimento de decepção,
principalmente entre os jovens que puxaram os mais velhos para a
praça.
Será necessário combater a corrupção, que lá é explícita: o ministro
da indústria era dono de um grande complexo industrial; o do turismo,
da maior operadora de turismo do país; o da habitação tinha a maior
construtora. E assim por diante. Desfazer toda essa teia de interesses
que captura o Estado, como sabemos bem, é uma longa batalha.
A oposição passou por cima da divisão anterior para construir a força
que os manteve unidos na Revolução da Praça Tahrir, mas agora será
retomada a competição entre os diversos grupos, até porque é natural e
saudável que isso aconteça na construção de uma verdadeira democracia.
Mas qual é o momento certo da divisão? Se for cedo demais, antes de se
consolidar o arcabouço da transição, os riscos aumentam.
Na lista do saldo favorável dos acontecimentos no Egito está a
derrubada de um dos preconceitos mais arraigados no Ocidente: o de que
era preciso tolerar uma ditadura laica, do contrário haveria um
governo religioso extremista. E o governo de Mubarak nem era tão laico
assim. Era de interferência direta na questão religiosa. O sermão da
sexta-feira a ser lido pelos líderes religiosos islâmicos tinha que
ser submetido à censura prévia do ministério que cuida especificamente
da religião. Terá agora que ser derrubado outro preconceito: o de que
há uma incompatibilidade entre a cultura árabe e a democracia.
Como disse Obama, o processo de transição não se completou, está no
início e há muito trabalho e riscos pela frente. Fiquemos por enquanto
com a beleza do povo na praça mudando a História de um país, de uma
região conflituosa, de um continente marcado. Fiquemos por um minuto
vendo a beleza da História sendo feita por todos os egípcios. É
inspirador.