Como tema inicial de ano novo, escolhi um tema que tem sido recorrente na administração Lula: a tentativa de racialização da crise social brasileira, por meio de políticas públicas específicas.
Tal iniciativa conspira contra o trunfo maior que o país dispõe para resolvê-la: o perfil mestiço da maioria de sua população. O apartheid nacional é de ordem sócio-econômica, não étnica. Ignorá-lo – ou fingir ignorá-lo – contribui apenas para agravar o quadro, desdobrando-se em múltiplos outros problemas.
É claro que há racismo no país. Onde há raças, há racismo, conforme o demonstra a história humana. Mas, além do fato de a legislação puni-lo com rigor, às vezes até excessivo, é exatamente a mestiçagem a chave para a superação dessa abjeção, pois dilui raças e estabelece outros tipos de identidade.
O Brasil, mais que qualquer outro país, tornou-se um caldeirão de culturas e etnias. É esse seu patrimônio maior. Aqui, oriente e ocidente não apenas se estabeleceram como se mesclaram (e continuam a se mesclar). E, no entanto, estão em curso políticas segregacionistas que erram o foco do problema, agravando-o. É o caso, por exemplo, do sistema de cotas para negros e índios para ingresso nas universidades.
Além da dificuldade de estabelecer, em meio a uma população mestiça, quem é o quê (há, inclusive, o caso emblemático de irmãos gêmeos classificados na Universidade de Brasília como de raças distintas), há uma clara troca de mãos. Busca-se estabelecer a inclusão social de cima para baixo.
O que impede alguém, no Brasil de hoje, de ingressar numa universidade pública é a precária formação básica – o ensino fundamental. O Estado oferece ensino superior de qualidade e ensino básico ruim. A iniciativa privada, o contrário: formação básica boa e (com honrosas exceções) superior ruim.
Tem-se então um resultado perverso: somente quem teve acesso a uma formação básica privada – em regra, caríssima – terá acesso à universidade pública. Isto é, somente os ricos. Basta conferir os pátios de estacionamento de automóveis das universidades públicas.
Em contrapartida, as universidades privadas, que cobram caro e oferecem mercadoria barata, são o recurso disponível ao estudante pobre. O sistema de cotas abre espaço para os excluídos, mas não supre as deficiências de formação básica, e acabará transferindo para o mercado de trabalho a discriminação contra seus beneficiários.
O mercado é implacável. Seleciona qualitativamente. A deficiência de formação básica deixa marcas profundas, que poucos superam. O bom senso indica que a inclusão social precisa se dar no ensino fundamental público, imprimindo-lhe qualidade. Não há atalho possível.
O sistema de cotas faz supor que a pobreza é monopólio dessa ou daquela raça, quando, entre nós, é de todas. Investir no ensino fundamental público atende a todos, gregos e goianos.
A mesma visão racialista (para não dizer racista) da crise social brasileira responde em parte pelos conflitos recorrentes em reservas indígenas, como a recente, em Raposa do Sol, Roraima. A idéia de que os índios são entes dissociados do país, constituindo uma nação à parte, só se sustenta para efeito de manipulação da realidade.
Quem conhece o Norte brasileiro sabe que a maioria da população urbana é de etnia indígena, perfeitamente integrada às mazelas e grandezas do país. O racismo no Brasil produziu incontáveis vítimas, em mais de três séculos de escravidão. Mas produziu também o seu antídoto, que é o fenômeno social da miscigenação coletiva.
Hoje, a exclusão social não é monopólio de nenhuma raça: é de todas. E é com essa universalidade que deve ser tratada. Ou não será resolvida. Eis uma boa reflexão de ano novo.