Fidel personificava admiravelmente o conceito - ou, mais do que isso, o valor moral - da legitimidade do uso da força contra todos quantos nela se apoiassem para oprimir os seus povos. Inscrito desde a tradição iluminista na cultura política ocidental, o direito de resistência ao despotismo projetava-se de Cuba, naqueles tempos trepidantes, como inseparável do direito ao combate, pelas armas, a uma ditadura cruel. Não tardou, porém, para que a bandeira da transformação radical dos padrões de vida dos cubanos fosse erguida por Fidel para justificar o regime crescentemente autoritário que impunha à sua desafortunada ilha e a sua metamorfose pessoal de condutor de um levante democrático em autocrata implacável com o dissenso.
Os formidáveis resultados obtidos pelo regime na erradicação do analfabetismo e na redução dos índices de mortalidade infantil - ponto de partida de uma sequência de avanços sem precedentes na América Latina em matéria de expansão acelerada do acesso à educação e da formação de profissionais da saúde - pareciam dar razão à crença de que essa era a "verdadeira" democracia, por oposição à democracia "burguesa" das liberdades formais que deixava intocadas as condições concretas de existência da grande maioria. Essa construção ideológica foi profundamente abalada, como se sabe, pela mudança tectônica a que o mundo assistiu depois do advento do castrismo - o colapso do chamado socialismo real no Leste Europeu - e pelo desmanche da economia cubana, desnudando um fracasso até então (mal) encoberto pelo milhão de dólares diários que a União Soviética proporcionava, décadas a fio, ao seu Estado-cliente no Caribe. Quando Fidel entrou em Havana, no dia 1º de janeiro de 1959, Cuba tinha a segunda maior renda per capita da América Latina, apesar das grandes desigualdades sociais. Quando a União Soviética desmoronou, a pobreza só não era homogênea, na ilha, porque aos quadros dirigentes do partido não faltavam os gêneros de primeira necessidade que a população era obrigada a racionar.
O estúpido bloqueio imposto à ilha pelos Estados Unidos - que só serviu para prorrogar o de outro modo escasso prazo de validade do "modelo" cubano - decerto contribuiu para exacerbar os efeitos dos programas econômicos de Fidel, um mais aloprado e devastador do que o outro. No entanto, a paternidade dessa sequência de fiascos é intransferível. Não fosse a tábua de salvação do turismo, um caso excepcional de competência da elite dirigente de Havana, de há muito o país teria soçobrado como um desses Estados falidos de que o Quarto Mundo é farto. Mas, ainda que não tivessem chegado a tanto os retrocessos econômicos provocados pela soberba fidelista, com o esfarinhamento dos progressos alcançados no campo social, a tragédia de fundo permaneceria rigorosamente a mesma: o regime liberticida de partido único, com as suas mordaças e os seus presos políticos, ainda intocado pelo tímido reformismo de Raúl Castro.
É, porém, uma questão de tempo. É simplesmente impossível que o esperado degelo nas relações cubano-americanas, com o afrouxamento das restrições ao fluxo de pessoas e capitais a partir dos Estados Unidos, não abra frestas na calcificada ditadura a um sopro de distância da Flórida. A troca da guarda em Washington, com a ascensão de Obama, e a diminuição da beligerância da próspera comunidade cubana nos EUA - por força da mudança geracional entre os emigrados - tenderão a tirar lastro da retórica do "inimigo externo" em Havana. O desafio será administrar a transição para a democracia.