Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 04, 2009

África do Sul, 15 anos depois Sergio Fausto

Quinze anos atrás chegava ao fim o apartheid na África do Sul, regime dominado por uma minoria branca que por décadas - de 1948 a 1994 - submeteu a maioria negra a leis de segregação racial e condições humilhantes de inferioridade política e social, cujas origens remontam à colonização europeia (holandesa e inglesa). As negociações que puseram fim pacífico ao regime valeram o Nobel da Paz a Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Africano (CNA), partido nascido na luta contra o regime, e o primeiro presidente pós-apartheid.

A África do Sul tem o que comemorar neste aniversário de 15 anos. De país condenado pela ONU passou a membro respeitado da comunidade internacional. Tornou-se uma democracia multirracial e pluriétnica, espécie rara no continente africano, e uma economia de mercado estável e integrada ao mundo, a ponto de deixar a vala comum para ser considerada "emergente".

Este será um ano crucial para o futuro do país. Pela frente, uma crise global que ameaça cortar o passo do seu desenvolvimento e agravar os problemas legados pela maldita herança do apartheid: um grande número de pobres (eram cerca de 50%, hoje ainda são mais de 40% da população), desemprego endêmico (que se aproxima dos 70% entre jovens negros, de 15 a 24 anos), alta criminalidade e baixos níveis de educação e saúde públicas (nada menos que 20% dos sul-africanos, estima-se, estão infectados pelo HIV).

Contra esse terrível pano de fundo existem sinais visíveis de melhora. Visitei recentemente Soweto, ao lado de Johannesburgo, área de segregação racial desde o final do século 19 e palco de lutas contra o apartheid nos anos 1970 e 1980. Lembrava-me das imagens vistas na TV: ruas empoeiradas e casas-barracões espremidas umas ao lado das outras. Encontrei paisagem diferente: ruas e avenidas pavimentadas, casas de alvenaria com pequenos jardins, áreas públicas gramadas. Fui também aos subúrbios afluentes de Johannesburgo, hoje bairros progressivamente mistos do ponto de vista racial.

Sim, há uma burguesia e uma classe média negras cada vez maiores. Os canais de ascensão se abriram com o fim do apartheid. Programas foram criados para permitir o acesso acelerado a oportunidades antes restritas à minoria branca. Eles contemplam desde a oferta de fundos para promover a aquisição e criação de empresas por "grupos historicamente marginalizados" (fundamentalmente os negros, mas também chineses e indianos) até a adoção de cotas raciais para a alta gerência das empresas, passando por "discriminação positiva" do governo na escolha de concessionários e fornecedores, entre outras medidas.

Percebe-se o esforço em compatibilizar os objetivos imediatos desses programas com a racionalidade econômica de uma economia de mercado. O resultado é controverso. Os críticos acusam as políticas do Black Economic Empowerment (BEE) de fomentar o surgimento de uma "aristocracia negra" baseada em conexões políticas privilegiadas. Outra acusação frequente é atribuir ao BEE responsabilidade pelo êxodo de profissionais brancos de alta qualificação, que se sentiriam injustamente preteridos em suas oportunidades profissionais.

Os conflitos por posições no mercado de trabalho não se restringem aos altos escalões. Mais próspera que seus vizinhos, a África do Sul atrai um contingente significativo de imigrantes de pouca qualificação profissional. Numa economia em que predominam atividades mais intensivas em capital que em mão-de-obra, como a mineração, há muita gente querendo trabalhar e poucos empregos à disposição. Em maio de 2008, uma série de distúrbios resultou em dezenas de mortos e centenas de feridos. As vítimas: trabalhadores imigrantes do Zimbábue, de Moçambique, do Malavi. Os algozes: trabalhadores sul-africanos. Todos negros.

Nos últimos seis anos, essas tensões sociais latentes - e às vezes explosivas - se beneficiaram dos efeitos anestésicos de um crescimento econômico de aproximadamente 5%, em média. A crise global, porém, dificilmente permitirá a repetição desse desempenho nos próximos anos. Ela atinge duramente a África do Sul, apesar da solidez de seu sistema bancário, do seu baixo grau de endividamento externo e de sua firme situação fiscal. A razão de fundo é simples: a grande dependência do país em relação às exportações de alguns poucos minérios (ouro e platina, principalmente), cujos preços estão desabando no mercado internacional, bem como em relação ao fluxo de investimento direto estrangeiro, em rápida retração.

Aos impactos da crise somam-se incertezas de uma transição de governo que se avizinha. Jacob Zuma, um personagem polêmico sobre o qual já pesaram acusações de estupro (das quais foi absolvido) e ainda pesam acusações de corrupção, é o candidato favorito às eleições presidenciais que terão lugar até junho. Teme-se que dê uma guinada "populista" na política econômica e radicalize os programas do BEE. Ele faz juras de que não haverá ruptura e intensifica o diálogo com a minoria branca.

Homem de origem popular, criado pela mãe, sem maior instrução formal, militante histórico da ala esquerda do CNA, Zuma vem recebendo elogios por seu pragmatismo e sua capacidade de negociação. Torcem os empresários e a classe média (branca e negra) para que a mudança política se dê sem ruptura econômica. Não faltam comparações esperançosas com o Brasil de FHC e Lula. O desafio do político sul-africano, porém, é maior. Não apenas pela circunstância da crise, mas também - quem sabe, principalmente - pelo fato de que, se eleito, presidirá um país em que a identidade nacional não é um "dado da história", mas uma complexa obra em andamento. Num mundo e num continente em que a convivência democrática entre raças e etnias diferentes tem sido antes a exceção do que a regra, a África do Sul merece atenção e apoio.

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