O Estado de S.Paulo - 04\11
Não tenho certeza, mas acho que já me queixei aqui de não vivermos mais no tempo de Marco Polo ou, melhor ainda, no tempo do grande Fernão Mendes Pinto, lembrado por portugueses ingratos como "Fernão, Mentes". Os mentirosos ilustres, que empolgavam a Europa com a narração dos perigos e portentos encontrados pelo mundo afora, hoje não poderiam soltar sua imaginação e legar aos contemporâneos tantas histórias empolgantes, narrativas sobre monstros marinhos capazes de engolir caravelas de uma só bocada, árvores falantes, rios de mel ou leite, ilhas de queijo, pássaros encantados que furtavam as almas dos homens que escutassem seu canto e tiranos orientais com haréns de milhares de mulheres.
Perdeu a graça, todo mundo já viu tudo e as coisas se complicaram, a começar pela circunstância de que os maiores mentirosos agora não são os viajantes, mas os políticos, concorrência imbatível. Se eu contar que testemunhei um monstro antropófago circulando e devorando passantes aqui em Madri, não somente ninguém vai acreditar, como poderei ser processado pelas autoridades turísticas espanholas, por espalhar lorotas cuja consequência seria afastar visitantes de outros países. No quarto do hotel em que fiquei antes de ir a Salamanca, havia um retrato de Torquemada, o temível Grande Inquisidor. Em matéria de fantasmas, Madri não tem tanta tradição quanto, por exemplo, Londres, mas contar uma boa historinha sobre aparições de Torquemada bem que podia quebrar o galho. Postei-me diante do retrato, pensando em como faria para puxar conversa, mas acabei decidindo não facilitar. Por algum desses azares do destino, quem sabe se ele não apareceria mesmo, decidido a me transformar em churrasco, depois de cortar minha língua, para que eu não blasfemasse, na hora em que acendessem a fogueira?
Sem monstros e sem fantasmas, nada do que posso contar sobre Madri e a Espanha em geral será novidade, mesmo para quem nunca esteve aqui. E então, como todo repórter que precisa mandar seu relato para a redação, resta-me sair pelas veneráveis ruas e praças do centro de Madri e lá colher observações agudas e judiciosas sobre a Espanha de nossos dias. Tomado de novo brio, preparo-me para sair, resolvido a não voltar antes de ter notado alguma coisa que venha a interessar o leitor. Mas que ouço? Que barulhinho suave é esse, que entra pela janela e noto somente agora?
Si, es la lluvia, como me esclarece, ao ver minha cara desapontada, um funcionário do hotel. É a chuva e, assim, ironicamente, se algum velho conhecedor de Madri me lesse, pensaria que agora, sim, se trata de uma grossa mentira. Em Madri, como sabe quem a conhece bem, quase nunca chove, mas está prevista chuva para os próximos dias. Ligo a televisão e confirmo a previsão, chuva e mais chuva. Bem, neste caso se pode talvez transformar o limão numa limonada. Talvez cole eu alegar que sou o mandachuva de Madri, porque tenho certeza de que essa água toda que despenca na cidade foi desencadeada pela minha presença. Por alguns instantes, fantasio ser contratado pela municipalidade para regular o regime pluvial de Madri, talvez até de toda a Espanha, mas o devaneio passa logo e volto à fria realidade.
E chega finalmente o dia em que devo ir a Salamanca. São pouco mais de 200 quilômetros de Madri até lá, mas a chuva me acompanha. Lembro um personagem das histórias em quadrinhos só conhecido dos mais velhos - Ferdinando, de Al Capp. Na cidade de Brejo Seco, onde morava Ferdinando, havia um sujeito tão azarado que tinha sempre uma nuvenzinha chuvosa, bem em cima de sua cabeça, acompanhando-o aonde quer que ele fosse. O mesmo destino me cabia na Espanha, pois também não chove tanto em Salamanca, mas minha chuva não falhou e assim me instalei resignadamente no hotel, para ver de longe a venerável cidade, que já era um centro universal de cultura uns quatro séculos antes de o Brasil ser achado pelos portugueses.
E, no hotel, os noticiários de tevê só falavam na catástrofe causada por um furacão sem precedentes, nos Estados Unidos. Já estive, algumas vezes, nas regiões mais atingidas pela calamidade e até as conheço relativamente bem. E, mesmo que não conhecesse, não faria muita diferença. Ver toda a devastação causada pela tempestade e sua conjugação mortífera de ventos, chuvas, inundações e nevascas, no país mais poderoso do mundo, onde o homem está acostumado a achar que doma a Natureza e que dispõe da tecnologia necessária para vencer qualquer obstáculo, de repente nos apequena e nos traz de volta à nossa precária condição. Aquela sucessão de acontecimentos contra a qual não havia força humana capaz de fazer qualquer coisa além de rezar, aquele caos na cidade de Nova York, aquelas pessoas assustadas e bestificadas por fatos que aprenderam a ignorar, aquela perplexidade desamparada, tudo isso só pode render uma extraordinária sensação de humildade e impotência, um lembrete ríspido de nossas limitações.
A caminho de Salamanca, tínhamos parado em Ávila, cidade conhecida dos católicos através de Santa Teresa. Uma de suas paisagens mais conhecidas é sua sólida muralha antiga, erguida há séculos, para conter invasores inimigos. Seus construtores acreditavam que ela, como as pedras de que é feita, duraria para sempre. Durou e dura, mas há muito é inútil para qualquer defesa, permanece apenas como monumento. E não um monumento para celebrar a obra humana, mas, se pensarmos bem, para mostrar sua fragilidade. Como os construtores de muralhas invencíveis, erguemos cidades invencíveis, das quais Nova York é símbolo. Mas, num instante, vemos como tudo isso não passa de ilusão voluntarista. Foi bom ver a muralha de Ávila, é sempre uma lição.