O Globo - 17/08
Entendem-se os cuidados semânticos da presidente Dilma. Afinal, seu partido soube manipular o tema da privatização, na campanha eleitoral de 2006, para tachar o candidato de oposição Geraldo Alckmin de perigoso "privatista", e assim fragilizá-lo no segundo turno daquelas eleições presidenciais, ganho por Lula. Por isso, Dilma e equipe fazem contorcionismos para tentar provar que "concessão" não é "privatização". Mas a discussão é pueril, diante do que é importante: o governo se rendeu ao óbvio, à necessidade de ceder à iniciativa privada parte da infraestrutura de transportes do país.
Embora haja inevitável exploração partidária, o lucro da mudança de rumo é da sociedade, porque privatizar começa a ser uma política de Estado, independentemente de quem esteja no poder. É o que se espera. Dilma, em certa medida, repete o candidato Lula quando ele, na campanha de 2002, assinou a Carta ao Povo Brasileiro, para garantir que não executaria os delírios prometidos do palanque pelo PT, durante os tempos de oposição. E não executou mesmo. Preservou princípios consagrados em qualquer país de economia de mercado com alguma maturidade institucional: respeito aos contratos, BC com alguma margem de autonomia, metas de inflação, câmbio flutuante. Como o figurino ideológico petista deriva do dirigismo destilado na primeira metade do século passado, há sempre algum cacoete estatista nas ações de governo desde 2003, embora este modelo tenha tido a falência decretada na década de 80. A correção de rota, agora, com as concessões, em bases mais racionais, de estradas, ferrovias e, em breve, portos e aeroportos, reparará erros derivados deste dogma.
O Planalto, enfim, se rendeu ao fato de que os investimentos públicos não conseguem assumir o papel que deveriam ter na infraestrutura, por deficiências gerenciais e até mesmo constrangimento fiscal, diante da realidade de um Estado convertido em provedor de pessoas, via "bolsas" e contas previdenciárias. Sem considerar a já elevada folha de pagamento de servidores, sob risco de ser ainda mais inflada, caso o Palácio ceda a grevistas já bastante bem remunerados.
Destaque-se, no pacote anunciado anteontem, o esvaziamento da estatal Valec, convertida pelo fisiologismo de petistas em moeda de troca para obter apoio político. A empresa foi "doada", ainda no primeiro governo Lula, ao antigo PL, rebatizado depois de PR, partido que montou, na empresa e no próprio Ministério dos Transportes, um balcão de negociatas. O escândalo explodiu no início do governo Dilma. No caso da Valec, o ex-presidente da estatal José Francisco das Neves, o disputado Juquinha, chegou a ser preso pela PF, com mulher e filho, por ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro - certamente desviado de obras ferroviárias (Norte-Sul).
O programa continuará a ser esmiuçado. Cabe, a partir de agora, acompanhá-lo, para que a burocracia não atravanque a sua tramitação, por incompetência e/ou sabotagem ideológica.