ÉPOCA
A saga da polícia federal em busca das provas do mensalão – e o momento em que marcos valério foi obrigado a colaborar com a Justiça
No começo da manhã de 13 de julho de 2005, uma quarta-feira que mudaria a história política do Brasil, uma equipe da Polícia Federal invadiu o prédio de número 380 na Avenida João Azeredo, em Belo Horizonte. Funcionava ali o arquivo do Banco Rural; começava naquele momento o dia mais difícil da carreira daqueles sete delegados e agentes. Pesava sobre eles a responsabilidade de encontrar e apreender os documentos que comprovariam o recém-descoberto esquema do mensalão. Com papéis, havia mensalão. Sem papéis, havia somente as palavras iracundas de Roberto Jefferson – o deputado do PTB que confessara como o governo do PT comprara os partidos da base aliada no Congresso.
Uma semana antes, enquanto a reputação de deputados e ministros estilhaçava- se a cada ária de Jefferson, delegados da PF haviam encontrado em Brasília a testemunha mais importante – e desconhecida – do caso: José Francisco de Almeida Rego, ex-tesoureiro da notória agência do Banco Rural na Capital Federal. Segundo Jefferson, era nessa agência que deputados e assessores buscavam o dinheiro do mensalão – algo que todos os envolvidos, àquela altura, negavam. Pressionado, Rego contou que a agência funcionava como uma espécie de sucursal financeira em Brasília do publicitário Marcos Valério, onde se distribuía dinheiro vivo à larga por ordens dele. Ordens que chegavam por fax ou e-mail, enviados da sede do Banco Rural em Belo Horizonte,onde se controlavam as contas de Valério.Como tudo era feito na camaradagem, e o dinheiro entregue não deixava vestígios, a prova do mensalão estava no arquivo central do Banco Rural. Lá, acreditava-se, constariam os pedidos de saque com os nomes dos beneficiários. Eram esses papéis que os policiais buscavam naquele dia.
“Só saímos daqui com esses documentos”, disseram os delegados assim que chegaram ao arquivo do Rural e entregaram a ordem judicial de busca e apreensão aos funcionários do banco. Prosseguiu-se entre eles o corre-corre que só o desespero provoca. Enquanto os delegados aguardavam a papelada, outras equipes da PF faziam batidas na agência do Rural em Brasília e na sede do banco, em Belo Horizonte (o arquivo do Rural fica noutro endereço). Os policiais tinham esperança de encontrar provas semelhantes nos dois locais.As más notícias, porém, viajavam rapidamente entre os rádios da PF.Câmbio: nada na agência do Rural em Brasília – apenas dez recibos de pagamento,mas sem nomes.Câmbio: nada na sede do Rural em Belo Horizonte.
Os documentos, ao que tudo indicava, haviam sido destruídos. No arquivo do Rural, as horas transcorriam lentamente. Dez da manhã.Meio-dia.Duas da tarde.
Quatro da tarde – e nada.Os sete policiais acossaram os funcionários e repetiram o ultimato: todo mundo só deixaria o prédio quando os papéis aparecessem. Súbito, apareceram.
Os advogados do Rural permitiram que os policiais fossem à sala onde estavam separadas caixas com os documentos. A equipe da PF constatou, num exame rápido, que se tratava dos papéis procurados. Havia faxes, e-mails, cheques e notas comas ordens de pagamento enviadas por gerentes de Marcos Valério à agência do Rural em Brasília. Eles exibiam os nomes dos deputados e de assessores pilhados no mensalão – entre eles, o petista João Paulo Cunha (ex-presidente da Câmara), José Janene (líder do PP) e Valdemar Costa Neto (presidente do PL). Não havia mais como negar – até aquele dia, Marcos Valério jurava que não repassara dinheiro a Delúbio Soares, e Delúbio Soares jurava que não recebera nada. A prova material confirmava o que Jefferson contara. O mensalão estava provado.
Os policiais informaram o achado a seus superiores em Brasília, lacraram os documentos e partiram rumo ao aeroporto da Pampulha. Entraram no Cessna Citation, prefixo PT-LVF, avião usado pela PF em suas principais operações – e deram ordem para que o piloto decolasse rumo a Brasília. Enquanto o Citation taxiava na pista, tocou o celular de um delegado. Era o juiz federal Jorge Gustavo Costa, da Quarta Vara de Minas Gerais, o mesmo que autorizara a busca no arquivo do Banco Rural. “Não é para decolar”, disse ele.“Voltem, lacrem tudo e devolvam o material.O processo vai subir.”Subir, no jargão jurídico, significava enviar os documentos do caso ao Supremo Tribunal Federal, onde o inquérito passaria a tramitar. Até então, o processo transcorria na Justiça Federal de Minas, onde estão sediadas as empresas de Marcos Valério.A razão da mudança estava implícita: o esquema envolvia parlamentares e ministros,que têm o direito de ser julgados apenas no STF.
Nada mais natural, portanto, que remeter o processo ao Supremo. O que causou estranheza entre os investigadores foi a espantosa velocidade da decisão: as provas haviam sido descobertas havia poucas horas. Nunca antes na história deste país a Justiça fora tão ágil. Os delegados foram informados pelo juiz Costa de que o advogado Marcelo Leonardo, que defendia Valério, lhe dissera havia pouco que seu cliente resolvera colaborar coma Justiça – e entregaria acusados com foro no STF. Ou seja: Valério entregaria o que provavelmente sabia que a PF já obtivera. Em seguida, o juiz Costa checou os documentos apreendidos, percebeu a gravidade do caso e ligou para o então presidente do Supremo, Nelson Jobim. “Traga o processo para cá pessoalmente”, disse Jobim. (Na semana seguinte, o juiz levou os documentos a Brasília.)
Até essa decisão do juiz Costa, os delegados esperavam ter alguns dias para analisar o material apreendido, escrever um relatório comas informações nele descobertas – e, só então, enviá-lo com o exame inicial das provas ao Supremo. Esse é o procedimento normal nesses casos. Mas o mensalão, ao que parece, era diferente. Às 20h40, os delegados já se encontravam na sede do Banco Rural em Belo Horizonte, cercados de advogados, lá deixando os documentos lacrados. A petição de Marcelo Leonardo pedindo que o inquérito fosse remetido ao STF só foi anexada ao processo dois dias depois. Alguém tinha pressa.
Na mesma noite do dia 13 de julho, ante o risco da queda da cúpula da República, Delúbio voou a Belo Horizonte. Foi jantar com Marcos Valério. Iniciava-se aí a montagem da versão da defesa. Os fatos viriam a público e eram inegáveis. Era preciso, portanto, enxergá- los sob outra luz, a luz do caixa dois – e não da compra de apoio político. Na mesma noite, o advogado Marcelo Leonardo pediu uma audiência de seu cliente como então procurador-geral da República,Antonio Fernando de Souza. No dia seguinte, Valério e seu advogado foram a Brasília. Às 15 horas, já estavam com Antonio Fernando. Entregaram a lista de beneficiários do valerioduto – e afirmaram que tudo não passava de caixa dois.Um dia depois, Delúbio foi à Procuradoria-Geral confirmar a versão de Valério. A República sobrevivera.
Mala de rodinhas
Se, hoje, a versão do caixa dois se transformou quase num cacoete dos réus, de tanto ser repetida nos últimos anos, naquele momento era uma novidade. Na noite seguinte à busca da PF no arquivo do Rural, quando o país soube que Marcos Valério entregara a lista com os nomes dos beneficiários do mensalão, pensava-se apenas na espantosa confirmação de que houvera pagamentos sujos a deputados. Parecia uma confissão. Era uma manobra – a manobra jurídica dos “recursos não contabilizados”.A versão é conhecida: Valério afirmou ter recebido uma proposta de Delúbio para tomar empréstimos, por meio de suas empresas, e repassar os recursos obtidos ao PT. De acordo com Valério, a proposta surgiu a partir de seu relacionamento com Delúbio e da “perspectiva de que, mantendo um bom relacionamento com o Partido do Governo, obtivesse serviços para suas empresas, inclusive em futuras campanhas eleitorais”.Delúbio, segundo Valério, dissera que os valores emprestados ao PT seriam restituídos com juros. Além disso, de acordo com a versão de Valério, Delúbio garantira que José Dirceu honraria o pagamento da dívida com as empresas de Valério diante de qualquer dificuldade.O dinheiro serviria para pagar dívidas de campanha da base aliada, que não teriam sido declaradas.
Por essa engenhosa versão, os R$ 55 milhões distribuídos por Marcos Valério a líderes do PT, do PP, do PR, do PMDB e do PTB tinham uma origem legal (empréstimos bancários no Rural e no banco BMG) e destino certo (pagar fornecedores de campanha). No decorrer do processo do mensalão, as investigações derrubaram as duas teses. A origem de boa parte do dinheiro era ilegal, desviada em grande parte dos cofres públicos, por meio de contratos das agências de Marcos Valério com o governo (isso está demonstrado em perícias da PF e do MP). Os empréstimos eram apenas um capital inicial para, nas palavras do procurador-geral Antonio Fernando, a “quadrilha” começar suas “atividades criminosas”. Laudos do Banco Central revelaram que os empréstimos foram concedidos sem lastro financeiro, não eram pagos – e nem eram cobrados pelos bancos. E o destino do dinheiro? Todos os réus embarcaram na versão do caixa dois. Disseram que quitaram despesas de campanha. Crime eleitoral tem penas menores e prescreve antes de corrupção. Quase nenhum beneficiário apresentou notas ou declinou nomes de fornecedores. O dinheiro sumira.
De caixa dois, portanto, faltaram provas. Mas sobraram evidências de corrupção, de favores indevidos – de que, em suma, as sucessivas provas de malfeitorias constituíam, no conjunto, o esquema de compra de apoio político mantido pelo governo do PT no Congresso. Em junho, pouco antes das descobertas da PF, deputados e assessores do PP confirmaram a ÉPOCA que parlamentares do partido recebiam mesada de José Janene, líder do partido, conforme denunciado por Jefferson. Quem entregava a propina era o assessor João Cláudio Genu. Meses depois, os extratos bancários de Valério e a lista entregue por ele ao MP confirmaram Genu como sacador e o PP como beneficiário do esquema. Janene se referiu ao esquema, em depoimento à PF, como um “acordo de cooperação financeira” entre PT e PP.
Naqueles meses iniciais do caso, o mecanismo de investigação era simples. Funcionava assim: a PF e a CPI dos Correios, que também investigava o caso no Congresso, recebiam provas e mais provas, como sigilos bancários, fiscais e telefônicos. As provas envolviam os nomes dos beneficiários do mensalão. Os acusados, que sempre negavam udo, admitiam o que era impossível desmentir – mas davam nova interpretação às evidências. Era o que Valério fizera quando resolveu entregar o caixa dois. O que era impossível desmentir, no entanto, já era grave demais, por mais benevolente que fosse a interpretação. Em 15 de agosto, também em reportagem publicada por ÉPOCA, o presidente do PR, Valdemar Costa Neto, admitiu que fizera um “acordo financeiro” com o PT. No caso dele, ainda mais grave. Valdemar contou, e confirmou depois à PF, que o acordo fora fechado numa reunião na qual se encontravam o então candidato à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, o líder petista José Dirceu e Delúbio Soares. Valdemar contou que vendera o apoio do PR (então PL) ao PT por R$ 10 milhões. Por que Valdemar disse isso? Porque havia provas bancárias de que ele recebera os R$ 10 milhões de Marcos Valério. Melhor chamar de “acordo” o que era uma negociação financeira paga com dinheiro sujo.
Escândalos de desvio de dinheiro são, infelizmente, comuns na política brasileira.Compra de apoio de deputados no varejo também aparece frequentemente no noticiário. O mensalão, no entanto, foi a primeira vez em que líderes de legendas admitiram vender apoio em troca de dinheiro vivo – entregue em malas de rodinhas, como afirmou Valdemar a ÉPOCA. No decorrer das investigações, PP e PTB admitiriam a mesma prática (leia no quadro abaixo as provas testemunhais). Era o caso, pela primeira vez comprovado na história brasileira, em que altos integrantes de um Poder – o Executivo – oferecem dinheiro em troca de apoio a altos integrantes de outro Poder – o Legislativo. Por si só,uma tentado contra a independência dos Poderes e as instituições democráticas.Quando o procurador-geral da República,Roberto Gurgel, definiu em sua acusação na última sexta-feira o mensalão como“o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, ele não cometeu um exagero retórico. Foi apenas preciso.
Falta de sintonia
As investigações eram intensas – mas dispersas, erráticas. Havia as CPIs no Congresso, que irradiavam depoimentos bombásticos. O marqueteiro Duda Mendonça, que trabalhou na campanha de Lula, confessou ter recebido o pagamento pelos serviços em contas secretas em paraísos fiscais – tudo quitado por Marcos Valério.As CPIs recebiam muitas provas, mas não tinham técnicos suficientes para analisar os documentos. Havia também as investigações da PF e do Ministério Público.Ambas deveriam ser feitas em colaboração.Não foi o que aconteceu. Antonio Fernando, o chefe do MP, reunira uma equipe de confiança, composta de outros três procuradores. Mas não confiava na equipe do delegado Luís Flávio Zampronha, que comandava as investigações da PF. As desconfianças eram mútuas, e em pouco tempo as relações se deterioraram a tal ponto que não havia mais diálogo.
A falta de sintonia produziu trapalhadas, boa parte delas mantida em sigilo até hoje. Os procuradores determinaram, sem compartilhar detalhes com os delegados, que a PF interceptasse o telefone de um“suspeito”que aparecera na lista de entrada dos prédios onde funcionavam o Banco Rural em Brasília e a sede dos Correios, foco de corrupção no governo. A PF mobilizou pessoal e recursos para manter a vigilância. Logo descobriu a identidade do suspeito: um mero funcionário de uma empresa de segurança – informação que poderia ter sido checada com facilidade pelos policiais.“ Perdemos tempo em muitas bobagens desse tipo”, diz um dos policiais que participaram da investigação.
Percalços como esse, é claro, não impediram os avanços. Dois acusados resolveram colaborar com o Ministério Público: o doleiro Lúcio Funaro e o ex secretário- geral do PT Silvio Pereira, o Silvinho, amigo de Dirceu. Funaro intermediara pagamentos do valerioduto a Valdemar. Em três depoimentos sigilosos ao MP, Funaro entregou os comprovantes dos pagamentos a Valdemar – e, por tabela, contou como, pouco antes do escândalo vir a público, Valdemar e Delúbio estavam prestes a ajudá-lo a fazer negociatas com fundos de pensão de estatais. Silvinho confirmou reuniões do deputado João Paulo Cunha, presidente da Câmara na época do mensalão, com Valério, a quem a Câmara contratara como publicitário e de quem João Paulo recebera dinheiro.
À medida que os depoimentos eram tomados pela PF e pelo MP (foram mais de 600), surgiam mais vínculos de Dirceu com o restante da quadrilha. Jefferson o acusara de chefiar o mensalão. Líderes partidários como Valdemar e Janene confirmaram que Dirceu participava do que chamavam de “acordos”. Em depoimentos, Valério e sua mulher, Renilda, disseram que Dirceu sabia dos acertos. As informações eram verossímeis. Dirceu era o líder do Campo Majoritário, corrente mais forte do PT, da qual também participavam Lula, José Genoino, Silvinhoe Delúbio – enfim, a cúpula do governo se misturava à cúpula do PT. Como explicou Jefferson e todos sabiam em Brasília, nenhum“acordo” era fechado sem o aval de Dirceu.
O acordo do mensalão – definido como compra de apoio político, como diz o Ministério Público – é um fato. Assim como a execução financeira desse acordo. Mas não foi o único. Nos depoimentos, constam outros acordos não republicanos de Dirceu com aliados, acordos negociados ou fechados no decorrer do mensalão. O mais grave envolve uma negociação entre Portugal Telecom e o Banco Espírito Santo para comprar a antiga Telemig.Valério era o intermediário dessa operação. Jefferson contou à Justiça que Dirceu prometeu que, se o negócio fosse fechado, Valério repassaria e 8 milhões ao PTB, como pagamento pelo apoio do partido de Jefferson ao governo.
Lendo os depoimentos do caso, surgem evidências de que se tentou fazer negócio. Em 11 de janeiro, Dirceu recebeu na Casa Civil Valério e Ricardo Espírito Santo, acionista do Banco Espírito Santo.Duas semanas depois,Emerson Palmieri, tesoureiro informal do PTB, sob orientação de Jefferson, viajou para Portugal ao lado de Valério e deRogério Tolentino, um dos sócios de Valério. Os três estiveram como presidente da Portugal Telecom. Tudo isso está admitido nos autos.Não se sabe por que o negócio não prosperou. Dirceu já prestou serviços de consultor à Portugal Telecom.
Há um elemento ainda mais constrangedor para Dirceu no processo. Envolve Maria Ângela Saragoça, ex-mulher dele. Ela recebeu favores dos bancos Rural e BMG,em episódios contado sem diferentes versões por todos os envolvidos. Em novembro de 2003,no auge do mensalão, Maria Ângela vendeu por R$ 115 mil um apartamento para Tolentino, o sócio de Valério.A operação foi intermediada por Ivan Guimarães, tesoureiro do PT ao lado de Delúbio e diretor do Banco do Brasil – e, dependendo de quem conta a história, também por Silvio Pereira. Tudo coincidência, segundo todos.Depois de vender o apartamento, Valério, segundo Maria Ângela admitiu, ajudou-a a conseguir um empréstimo de R$ 42 mil no Banco Rural. Como dinheiro, ela comprou um apartamento maior. Dois meses depois, Valério conseguiu um emprego para Maria Ângela no BMG. Como Maria Ângela é funcionária pública, ela disse à Justiça que trabalhava no BMG “três horas por dia”, após o expediente.
Na sexta-feira, quando foi ao plenário do Supremo Tribunal Federal apresentar sua peça de acusação, o procurador- geral Gurgel iniciou sua fala dizendo que haveria provas suficientes para condenar Dirceu.Antes de listá-las, invocou uma teoria jurídica conhecida como “domínio do fato”. Sistematizada pelo jurista alemão Hans Welzel, tal teoria visa complementar outra teoria, conhecida como “restritiva”. Simplificando bastante, a “teoria restritiva”considera como autor do crime só quem realiza diretamente a ação criminosa. Para Welzel, também é autor do crime quem tem o “domínio do fato”, aquele que está no controle da ação criminosa. Em casos ligados a formação de quadrilha ou vínculos mafiosos, segundo Welzel, é extremamente difícil encontrar provas materiais definitivas de envolvimento dos líderes, pois em geral eles costumam não deixar rastros – eles não “sujam as mãos”. Mas seu envolvimento pode ser comprovado por meio das testemunhas que contribuem com o inquérito.
Segundo Gurgel, os depoimentos coletados pelo Ministério Público provam que José Dirceu tinha o “domínio do fato”.Vários dos testemunhos mostram que ele esteve presente a algumas das negociações em que se ofereceu dinheiro em troca de apoio – e, quando não esteve presente, homologou os acordos por telefone.A peça acusatória de Gurgel apresentou abundância de provas contra os réus do mensalão. Faz parte da estratégia da defesa desqualificar essas provas, invocando a “teoria restritiva”. Cabe aos juízes do Supremo Tribunal Federal decidir entre as alegações dos advogados que assessoramos réus do mensalão – entre eles, grandes nomes do Direito brasileiro como Arnaldo Malheiros Filho ou Márcio Thomaz Bastos (leia sua entrevista na página 80) – e a acusação consistente elaborada pela Procuradoria-Geral da República com base no trabalho até hoje pouco conhecido da Polícia Federal.
A saga da polícia federal em busca das provas do mensalão – e o momento em que marcos valério foi obrigado a colaborar com a Justiça
Diego Escosteguy e Marcelo Rocha
No começo da manhã de 13 de julho de 2005, uma quarta-feira que mudaria a história política do Brasil, uma equipe da Polícia Federal invadiu o prédio de número 380 na Avenida João Azeredo, em Belo Horizonte. Funcionava ali o arquivo do Banco Rural; começava naquele momento o dia mais difícil da carreira daqueles sete delegados e agentes. Pesava sobre eles a responsabilidade de encontrar e apreender os documentos que comprovariam o recém-descoberto esquema do mensalão. Com papéis, havia mensalão. Sem papéis, havia somente as palavras iracundas de Roberto Jefferson – o deputado do PTB que confessara como o governo do PT comprara os partidos da base aliada no Congresso.
Uma semana antes, enquanto a reputação de deputados e ministros estilhaçava- se a cada ária de Jefferson, delegados da PF haviam encontrado em Brasília a testemunha mais importante – e desconhecida – do caso: José Francisco de Almeida Rego, ex-tesoureiro da notória agência do Banco Rural na Capital Federal. Segundo Jefferson, era nessa agência que deputados e assessores buscavam o dinheiro do mensalão – algo que todos os envolvidos, àquela altura, negavam. Pressionado, Rego contou que a agência funcionava como uma espécie de sucursal financeira em Brasília do publicitário Marcos Valério, onde se distribuía dinheiro vivo à larga por ordens dele. Ordens que chegavam por fax ou e-mail, enviados da sede do Banco Rural em Belo Horizonte,onde se controlavam as contas de Valério.Como tudo era feito na camaradagem, e o dinheiro entregue não deixava vestígios, a prova do mensalão estava no arquivo central do Banco Rural. Lá, acreditava-se, constariam os pedidos de saque com os nomes dos beneficiários. Eram esses papéis que os policiais buscavam naquele dia.
“Só saímos daqui com esses documentos”, disseram os delegados assim que chegaram ao arquivo do Rural e entregaram a ordem judicial de busca e apreensão aos funcionários do banco. Prosseguiu-se entre eles o corre-corre que só o desespero provoca. Enquanto os delegados aguardavam a papelada, outras equipes da PF faziam batidas na agência do Rural em Brasília e na sede do banco, em Belo Horizonte (o arquivo do Rural fica noutro endereço). Os policiais tinham esperança de encontrar provas semelhantes nos dois locais.As más notícias, porém, viajavam rapidamente entre os rádios da PF.Câmbio: nada na agência do Rural em Brasília – apenas dez recibos de pagamento,mas sem nomes.Câmbio: nada na sede do Rural em Belo Horizonte.
Os documentos, ao que tudo indicava, haviam sido destruídos. No arquivo do Rural, as horas transcorriam lentamente. Dez da manhã.Meio-dia.Duas da tarde.
Quatro da tarde – e nada.Os sete policiais acossaram os funcionários e repetiram o ultimato: todo mundo só deixaria o prédio quando os papéis aparecessem. Súbito, apareceram.
Os advogados do Rural permitiram que os policiais fossem à sala onde estavam separadas caixas com os documentos. A equipe da PF constatou, num exame rápido, que se tratava dos papéis procurados. Havia faxes, e-mails, cheques e notas comas ordens de pagamento enviadas por gerentes de Marcos Valério à agência do Rural em Brasília. Eles exibiam os nomes dos deputados e de assessores pilhados no mensalão – entre eles, o petista João Paulo Cunha (ex-presidente da Câmara), José Janene (líder do PP) e Valdemar Costa Neto (presidente do PL). Não havia mais como negar – até aquele dia, Marcos Valério jurava que não repassara dinheiro a Delúbio Soares, e Delúbio Soares jurava que não recebera nada. A prova material confirmava o que Jefferson contara. O mensalão estava provado.
Os policiais informaram o achado a seus superiores em Brasília, lacraram os documentos e partiram rumo ao aeroporto da Pampulha. Entraram no Cessna Citation, prefixo PT-LVF, avião usado pela PF em suas principais operações – e deram ordem para que o piloto decolasse rumo a Brasília. Enquanto o Citation taxiava na pista, tocou o celular de um delegado. Era o juiz federal Jorge Gustavo Costa, da Quarta Vara de Minas Gerais, o mesmo que autorizara a busca no arquivo do Banco Rural. “Não é para decolar”, disse ele.“Voltem, lacrem tudo e devolvam o material.O processo vai subir.”Subir, no jargão jurídico, significava enviar os documentos do caso ao Supremo Tribunal Federal, onde o inquérito passaria a tramitar. Até então, o processo transcorria na Justiça Federal de Minas, onde estão sediadas as empresas de Marcos Valério.A razão da mudança estava implícita: o esquema envolvia parlamentares e ministros,que têm o direito de ser julgados apenas no STF.
Nada mais natural, portanto, que remeter o processo ao Supremo. O que causou estranheza entre os investigadores foi a espantosa velocidade da decisão: as provas haviam sido descobertas havia poucas horas. Nunca antes na história deste país a Justiça fora tão ágil. Os delegados foram informados pelo juiz Costa de que o advogado Marcelo Leonardo, que defendia Valério, lhe dissera havia pouco que seu cliente resolvera colaborar coma Justiça – e entregaria acusados com foro no STF. Ou seja: Valério entregaria o que provavelmente sabia que a PF já obtivera. Em seguida, o juiz Costa checou os documentos apreendidos, percebeu a gravidade do caso e ligou para o então presidente do Supremo, Nelson Jobim. “Traga o processo para cá pessoalmente”, disse Jobim. (Na semana seguinte, o juiz levou os documentos a Brasília.)
Até essa decisão do juiz Costa, os delegados esperavam ter alguns dias para analisar o material apreendido, escrever um relatório comas informações nele descobertas – e, só então, enviá-lo com o exame inicial das provas ao Supremo. Esse é o procedimento normal nesses casos. Mas o mensalão, ao que parece, era diferente. Às 20h40, os delegados já se encontravam na sede do Banco Rural em Belo Horizonte, cercados de advogados, lá deixando os documentos lacrados. A petição de Marcelo Leonardo pedindo que o inquérito fosse remetido ao STF só foi anexada ao processo dois dias depois. Alguém tinha pressa.
Na mesma noite do dia 13 de julho, ante o risco da queda da cúpula da República, Delúbio voou a Belo Horizonte. Foi jantar com Marcos Valério. Iniciava-se aí a montagem da versão da defesa. Os fatos viriam a público e eram inegáveis. Era preciso, portanto, enxergá- los sob outra luz, a luz do caixa dois – e não da compra de apoio político. Na mesma noite, o advogado Marcelo Leonardo pediu uma audiência de seu cliente como então procurador-geral da República,Antonio Fernando de Souza. No dia seguinte, Valério e seu advogado foram a Brasília. Às 15 horas, já estavam com Antonio Fernando. Entregaram a lista de beneficiários do valerioduto – e afirmaram que tudo não passava de caixa dois.Um dia depois, Delúbio foi à Procuradoria-Geral confirmar a versão de Valério. A República sobrevivera.
Mala de rodinhas
Se, hoje, a versão do caixa dois se transformou quase num cacoete dos réus, de tanto ser repetida nos últimos anos, naquele momento era uma novidade. Na noite seguinte à busca da PF no arquivo do Rural, quando o país soube que Marcos Valério entregara a lista com os nomes dos beneficiários do mensalão, pensava-se apenas na espantosa confirmação de que houvera pagamentos sujos a deputados. Parecia uma confissão. Era uma manobra – a manobra jurídica dos “recursos não contabilizados”.A versão é conhecida: Valério afirmou ter recebido uma proposta de Delúbio para tomar empréstimos, por meio de suas empresas, e repassar os recursos obtidos ao PT. De acordo com Valério, a proposta surgiu a partir de seu relacionamento com Delúbio e da “perspectiva de que, mantendo um bom relacionamento com o Partido do Governo, obtivesse serviços para suas empresas, inclusive em futuras campanhas eleitorais”.Delúbio, segundo Valério, dissera que os valores emprestados ao PT seriam restituídos com juros. Além disso, de acordo com a versão de Valério, Delúbio garantira que José Dirceu honraria o pagamento da dívida com as empresas de Valério diante de qualquer dificuldade.O dinheiro serviria para pagar dívidas de campanha da base aliada, que não teriam sido declaradas.
Por essa engenhosa versão, os R$ 55 milhões distribuídos por Marcos Valério a líderes do PT, do PP, do PR, do PMDB e do PTB tinham uma origem legal (empréstimos bancários no Rural e no banco BMG) e destino certo (pagar fornecedores de campanha). No decorrer do processo do mensalão, as investigações derrubaram as duas teses. A origem de boa parte do dinheiro era ilegal, desviada em grande parte dos cofres públicos, por meio de contratos das agências de Marcos Valério com o governo (isso está demonstrado em perícias da PF e do MP). Os empréstimos eram apenas um capital inicial para, nas palavras do procurador-geral Antonio Fernando, a “quadrilha” começar suas “atividades criminosas”. Laudos do Banco Central revelaram que os empréstimos foram concedidos sem lastro financeiro, não eram pagos – e nem eram cobrados pelos bancos. E o destino do dinheiro? Todos os réus embarcaram na versão do caixa dois. Disseram que quitaram despesas de campanha. Crime eleitoral tem penas menores e prescreve antes de corrupção. Quase nenhum beneficiário apresentou notas ou declinou nomes de fornecedores. O dinheiro sumira.
De caixa dois, portanto, faltaram provas. Mas sobraram evidências de corrupção, de favores indevidos – de que, em suma, as sucessivas provas de malfeitorias constituíam, no conjunto, o esquema de compra de apoio político mantido pelo governo do PT no Congresso. Em junho, pouco antes das descobertas da PF, deputados e assessores do PP confirmaram a ÉPOCA que parlamentares do partido recebiam mesada de José Janene, líder do partido, conforme denunciado por Jefferson. Quem entregava a propina era o assessor João Cláudio Genu. Meses depois, os extratos bancários de Valério e a lista entregue por ele ao MP confirmaram Genu como sacador e o PP como beneficiário do esquema. Janene se referiu ao esquema, em depoimento à PF, como um “acordo de cooperação financeira” entre PT e PP.
Naqueles meses iniciais do caso, o mecanismo de investigação era simples. Funcionava assim: a PF e a CPI dos Correios, que também investigava o caso no Congresso, recebiam provas e mais provas, como sigilos bancários, fiscais e telefônicos. As provas envolviam os nomes dos beneficiários do mensalão. Os acusados, que sempre negavam udo, admitiam o que era impossível desmentir – mas davam nova interpretação às evidências. Era o que Valério fizera quando resolveu entregar o caixa dois. O que era impossível desmentir, no entanto, já era grave demais, por mais benevolente que fosse a interpretação. Em 15 de agosto, também em reportagem publicada por ÉPOCA, o presidente do PR, Valdemar Costa Neto, admitiu que fizera um “acordo financeiro” com o PT. No caso dele, ainda mais grave. Valdemar contou, e confirmou depois à PF, que o acordo fora fechado numa reunião na qual se encontravam o então candidato à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, o líder petista José Dirceu e Delúbio Soares. Valdemar contou que vendera o apoio do PR (então PL) ao PT por R$ 10 milhões. Por que Valdemar disse isso? Porque havia provas bancárias de que ele recebera os R$ 10 milhões de Marcos Valério. Melhor chamar de “acordo” o que era uma negociação financeira paga com dinheiro sujo.
Escândalos de desvio de dinheiro são, infelizmente, comuns na política brasileira.Compra de apoio de deputados no varejo também aparece frequentemente no noticiário. O mensalão, no entanto, foi a primeira vez em que líderes de legendas admitiram vender apoio em troca de dinheiro vivo – entregue em malas de rodinhas, como afirmou Valdemar a ÉPOCA. No decorrer das investigações, PP e PTB admitiriam a mesma prática (leia no quadro abaixo as provas testemunhais). Era o caso, pela primeira vez comprovado na história brasileira, em que altos integrantes de um Poder – o Executivo – oferecem dinheiro em troca de apoio a altos integrantes de outro Poder – o Legislativo. Por si só,uma tentado contra a independência dos Poderes e as instituições democráticas.Quando o procurador-geral da República,Roberto Gurgel, definiu em sua acusação na última sexta-feira o mensalão como“o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, ele não cometeu um exagero retórico. Foi apenas preciso.
Falta de sintonia
As investigações eram intensas – mas dispersas, erráticas. Havia as CPIs no Congresso, que irradiavam depoimentos bombásticos. O marqueteiro Duda Mendonça, que trabalhou na campanha de Lula, confessou ter recebido o pagamento pelos serviços em contas secretas em paraísos fiscais – tudo quitado por Marcos Valério.As CPIs recebiam muitas provas, mas não tinham técnicos suficientes para analisar os documentos. Havia também as investigações da PF e do Ministério Público.Ambas deveriam ser feitas em colaboração.Não foi o que aconteceu. Antonio Fernando, o chefe do MP, reunira uma equipe de confiança, composta de outros três procuradores. Mas não confiava na equipe do delegado Luís Flávio Zampronha, que comandava as investigações da PF. As desconfianças eram mútuas, e em pouco tempo as relações se deterioraram a tal ponto que não havia mais diálogo.
A falta de sintonia produziu trapalhadas, boa parte delas mantida em sigilo até hoje. Os procuradores determinaram, sem compartilhar detalhes com os delegados, que a PF interceptasse o telefone de um“suspeito”que aparecera na lista de entrada dos prédios onde funcionavam o Banco Rural em Brasília e a sede dos Correios, foco de corrupção no governo. A PF mobilizou pessoal e recursos para manter a vigilância. Logo descobriu a identidade do suspeito: um mero funcionário de uma empresa de segurança – informação que poderia ter sido checada com facilidade pelos policiais.“ Perdemos tempo em muitas bobagens desse tipo”, diz um dos policiais que participaram da investigação.
Percalços como esse, é claro, não impediram os avanços. Dois acusados resolveram colaborar com o Ministério Público: o doleiro Lúcio Funaro e o ex secretário- geral do PT Silvio Pereira, o Silvinho, amigo de Dirceu. Funaro intermediara pagamentos do valerioduto a Valdemar. Em três depoimentos sigilosos ao MP, Funaro entregou os comprovantes dos pagamentos a Valdemar – e, por tabela, contou como, pouco antes do escândalo vir a público, Valdemar e Delúbio estavam prestes a ajudá-lo a fazer negociatas com fundos de pensão de estatais. Silvinho confirmou reuniões do deputado João Paulo Cunha, presidente da Câmara na época do mensalão, com Valério, a quem a Câmara contratara como publicitário e de quem João Paulo recebera dinheiro.
À medida que os depoimentos eram tomados pela PF e pelo MP (foram mais de 600), surgiam mais vínculos de Dirceu com o restante da quadrilha. Jefferson o acusara de chefiar o mensalão. Líderes partidários como Valdemar e Janene confirmaram que Dirceu participava do que chamavam de “acordos”. Em depoimentos, Valério e sua mulher, Renilda, disseram que Dirceu sabia dos acertos. As informações eram verossímeis. Dirceu era o líder do Campo Majoritário, corrente mais forte do PT, da qual também participavam Lula, José Genoino, Silvinhoe Delúbio – enfim, a cúpula do governo se misturava à cúpula do PT. Como explicou Jefferson e todos sabiam em Brasília, nenhum“acordo” era fechado sem o aval de Dirceu.
O acordo do mensalão – definido como compra de apoio político, como diz o Ministério Público – é um fato. Assim como a execução financeira desse acordo. Mas não foi o único. Nos depoimentos, constam outros acordos não republicanos de Dirceu com aliados, acordos negociados ou fechados no decorrer do mensalão. O mais grave envolve uma negociação entre Portugal Telecom e o Banco Espírito Santo para comprar a antiga Telemig.Valério era o intermediário dessa operação. Jefferson contou à Justiça que Dirceu prometeu que, se o negócio fosse fechado, Valério repassaria e 8 milhões ao PTB, como pagamento pelo apoio do partido de Jefferson ao governo.
Lendo os depoimentos do caso, surgem evidências de que se tentou fazer negócio. Em 11 de janeiro, Dirceu recebeu na Casa Civil Valério e Ricardo Espírito Santo, acionista do Banco Espírito Santo.Duas semanas depois,Emerson Palmieri, tesoureiro informal do PTB, sob orientação de Jefferson, viajou para Portugal ao lado de Valério e deRogério Tolentino, um dos sócios de Valério. Os três estiveram como presidente da Portugal Telecom. Tudo isso está admitido nos autos.Não se sabe por que o negócio não prosperou. Dirceu já prestou serviços de consultor à Portugal Telecom.
Há um elemento ainda mais constrangedor para Dirceu no processo. Envolve Maria Ângela Saragoça, ex-mulher dele. Ela recebeu favores dos bancos Rural e BMG,em episódios contado sem diferentes versões por todos os envolvidos. Em novembro de 2003,no auge do mensalão, Maria Ângela vendeu por R$ 115 mil um apartamento para Tolentino, o sócio de Valério.A operação foi intermediada por Ivan Guimarães, tesoureiro do PT ao lado de Delúbio e diretor do Banco do Brasil – e, dependendo de quem conta a história, também por Silvio Pereira. Tudo coincidência, segundo todos.Depois de vender o apartamento, Valério, segundo Maria Ângela admitiu, ajudou-a a conseguir um empréstimo de R$ 42 mil no Banco Rural. Como dinheiro, ela comprou um apartamento maior. Dois meses depois, Valério conseguiu um emprego para Maria Ângela no BMG. Como Maria Ângela é funcionária pública, ela disse à Justiça que trabalhava no BMG “três horas por dia”, após o expediente.
Na sexta-feira, quando foi ao plenário do Supremo Tribunal Federal apresentar sua peça de acusação, o procurador- geral Gurgel iniciou sua fala dizendo que haveria provas suficientes para condenar Dirceu.Antes de listá-las, invocou uma teoria jurídica conhecida como “domínio do fato”. Sistematizada pelo jurista alemão Hans Welzel, tal teoria visa complementar outra teoria, conhecida como “restritiva”. Simplificando bastante, a “teoria restritiva”considera como autor do crime só quem realiza diretamente a ação criminosa. Para Welzel, também é autor do crime quem tem o “domínio do fato”, aquele que está no controle da ação criminosa. Em casos ligados a formação de quadrilha ou vínculos mafiosos, segundo Welzel, é extremamente difícil encontrar provas materiais definitivas de envolvimento dos líderes, pois em geral eles costumam não deixar rastros – eles não “sujam as mãos”. Mas seu envolvimento pode ser comprovado por meio das testemunhas que contribuem com o inquérito.
Segundo Gurgel, os depoimentos coletados pelo Ministério Público provam que José Dirceu tinha o “domínio do fato”.Vários dos testemunhos mostram que ele esteve presente a algumas das negociações em que se ofereceu dinheiro em troca de apoio – e, quando não esteve presente, homologou os acordos por telefone.A peça acusatória de Gurgel apresentou abundância de provas contra os réus do mensalão. Faz parte da estratégia da defesa desqualificar essas provas, invocando a “teoria restritiva”. Cabe aos juízes do Supremo Tribunal Federal decidir entre as alegações dos advogados que assessoramos réus do mensalão – entre eles, grandes nomes do Direito brasileiro como Arnaldo Malheiros Filho ou Márcio Thomaz Bastos (leia sua entrevista na página 80) – e a acusação consistente elaborada pela Procuradoria-Geral da República com base no trabalho até hoje pouco conhecido da Polícia Federal.