O GLOBO - 12/08
Está na mesa da doutora Dilma, esperando sua assinatura, a medida provisória 563. É uma daquelas MP do tipo "aterro sanitário", pois tem de tudo. Em tese, destina-se a estimular a indústria nacional. Na prática, distribui favores. Chegou ao Congresso com uma lista de benefícios que ocupava duas páginas, ficou com 14. Um dos enxertos, patrocinado pelo senador Romero Jucá por inspiração do Ministério da Saúde, dispensa de licitação a compra de "produtos estratégicos" para o SUS quando houver "transferência de tecnologia". Em bom português: dá ao comissariado o poder de atropelar o processo de transparência das compras.
O doutor Alexandre Padilha já se encrencou com um contrato de compra de softwares portugueses que, entre outras coisas, serviriam ao gerenciamento do Cartão SUS. Vinha embrulhado na parolagem do "estratégico" e da "transferência de tecnologia". Exposto à luz do sol, o contrato foi suspenso e, logo depois, cancelado.
O artigo 73 da MP permitirá que o comissariado compre mercadorias para o SUS sem avisar ao público e sem explicar porque escolheu esta ou aquela empresa. Num exemplo hipotético, acontecerá o seguinte:
Admita-se que o SUS quer trazer uma nova tecnologia de remédio para hipertensão. Um laboratório sérvio desenvolveu um novo ingrediente, o "padilhol", capaz de melhorar o desempenho de um anti-hipertensivo. Já um concorrente croata produz o "padilhil" e diz que tem as mesmas qualidades. O comissariado escolhe uma empresa de Ribeirão Preto que contratou a transferência da tecnologia do "padilhol" para vendê-lo ao SUS. Pela lei, o governo deve abrir uma licitação. Graças à MP 563, fica dispensado até mesmo de avisar a quem tem interesse no negócio, no exemplo, os croatas do "padilhil". Licitá-la, nem pensar. Se isso fosse pouco, enquanto durar o que se entende como "etapas de absorção tecnológica" (algo como um par de anos), a empresa de Ribeirão Preto ganhará o monopólio de fornecimento de um "padilhol" comprado na Índia. Algo como remunerar o pai porque o filho está na escola absorvendo conhecimento.
O que há de mais esquisito nessa operação é seu caráter secreto. Num negócio que, no futuro, poderá chegar a R$ 2 bilhões anuais, o comissariado decidirá, e está acabado. No mundo dos medicamentos conhece-se a formação de monopólios por meio do jogo de patentes. É um processo odioso, mas, bem ou mal, na sua origem houve algum tipo de pesquisa. O que se quer agora é a formação de um cartório de monopólios no qual se pesquisará apenas quem é amigo de quem.
Mãe do PAC
A doutora Dilma faria um bem ao país se nomeasse uma Comissão da Verdade 2.0, destinada a investigar a construção de lorotas do governo. Ela ficaria encarregada de explicar ao país como um trem-bala, que foi anunciado em 2007 ao preço de US$ 9 bilhões, hoje está estimado em US$ 16,5 bilhões. Felizmente, as tentativas de atropelamento fracassaram, a ideia continua no papel e o doutor Juquinha, primeiro tocador do projeto, passou algumas noites na cadeia.
Noutro caso, a Comissão 2.0 estudaria uma obra mais cabeluda, a da refinaria Abreu e Lima, da Petrobras. Ela foi anunciada em 2005 por US$ 2,3 bilhões e agora estima-se que custe US$ 20,1 bilhões. Deveria operar em 2010 e ficou para 2014.
Como no caso da Comissão da Verdade 1.0, a 2.0 não buscaria punições, apenas o metabolismo das mentiras que impulsionam projetos e ruínas.
Recordar é viver
Existem no Brasil cinco escolas com o nome da menina Anne Frank, morta no campo de concentração de Bergen-Belsen em 1945.
A comunidade judaica brasileira promoveu a visita de suas diretoras à Holanda, onde elas visitaram a casa em cujo sótão a família Frank se escondeu durante mais de dois anos. Além disso, as escolas são ajudadas com programas de capacitação.
Nunca é demais lembrar que, em 1961, o governador do Rio, Carlos Lacerda, deu o nome de Anne Frank a uma escola que fica ao lado do Palácio Guanabara, em frente à embaixada da Alemanha.
Osso duro
A Ordem dos Advogados do Brasil marcou para novembro as eleições para suas 27 seccionais e pediu ao Tribunal Superior Eleitoral o empréstimo de 3 mil urnas eletrônicas. A ministra Cármen Lúcia, presidente do tribunal, indeferiu a solicitação. A lei proíbe o empréstimo de urnas 120 dias antes e 120 dias depois da realização de eleições oficiais. Os doutores estão reclamando, mas podem tirar o cavalo da chuva.
Se ninguém consegue convencer a ministra a usar o carro oficial a que tem direito, dificilmente aparecerá quem a convença a emprestar o patrimônio da Viúva a quem não o tem.
Com seu Golf prateado (2001), ela já foi barrada na cerimônia em que daria posse a um novo ministro do Supremo.
Um cardápio de conduta para o Piantella
Havia um botequim de Brasília chamado Tarantella, frequentado por oposicionistas como Ulysses Guimarães. Mudou o mapa do poder, ele cresceu e passou a chamar-se Piantella. Tem piano, jirau, galeria de frequentadores ilustres e é um point da elite da cidade. Seu dono, Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, é advogado de celebridades como José Sarney e Carolina Dieckmann.
Desde o início do julgamento do mensalão, o Piantella tornou-se um centro de eventos constrangedores, com um advogado de mensaleiro pedindo ao pianista que tocasse o tema de "Godfather" e Demóstenes Torres cantando "Deixe-me Tentar de Novo".
Houve um restaurante em Washington chamado Signatures. Com sua galeria de autógrafos, entre eles um do czar Nicolau II, foi o point da era republicana. Seu dono, Jack Abramoff, um grande lobista, acabou pagando 34 meses de cadeia e o estabelecimento fechou em 2006.
Guimarães Rosa dizia que nas casas do Beco do Sem Ceroula "gente séria entra, mas não passa". Se a freguesia do Piantella não respeitar um cardápio de boa conduta, virará um lugar por onde gente séria passa, mas não entra.
Entrevista:O Estado inteligente
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