O Estado de S. Paulo Muitos poetas, papas e políticos moram no inferno de Dante. Entre eles está um populista famoso do qual falaremos daqui a pouco. Já sei que você vai reclamar: Dante desconhecia o populismo, pois a América Latina não existia naquela época. Mas o criador da Divina Comédia, embora desconhecesse o termo, entendia o caráter do populista em detalhe. Apenas não usou o vocábulo. Preferiu o cognome de falso guia para descrever a personalidade desse tipo manjado da política universal. Hoje em dia atribuímos a pecha de populista a políticos dos mais diferentes matizes, incluindo aquele a quem falta fulgor, mas que se aferra a ganhos eleitoreiros de curto prazo, defendendo o protecionismo, desacreditando dos perigos da inflação e demonstrando otimismo exagerado em relação ao crescimento obtido com estímulos ao consumo. Entretanto, o populista autêntico - como o Domingo Perón que Cristina Kirchner procura reencarnar - segue um modelo clássico: o do demagogo nacionalista, mentiroso e autoritário. Dante nos diz que o pecado do carismático, que arregimenta seguidores com charme e ideias ruins, consiste na fraude. Por isso o coloca na oitava vala do oitavo círculo do inferno - o mesmo círculo onde estão outros fraudadores: bruxos, corruptos, simoníacos, ladrões, hipócritas e falsos guias. Enquanto os hipócritas carregam pesadas capas de chumbo, os populistas ardem dentro de línguas de fogo bifurcadas. Numa delas está Ulisses. Todo mundo que leu a Odisseia sabe que Ulisses era um mentiroso. Dante adiciona-lhe ainda outros defeitos. Nem o amor de Penélope (nem a saudade do filho) venceu nele o desejo da aventura desvinculada de qualquer obrigação, segundo a confissão que o herói faz a Virgílio no canto XXVI do Inferno. Dante - que não lia grego nem dispunha no final do século 13 de traduções latinas de Homero e conhecia Ulisses apenas pela Eneida - pode tomar a liberdade de inventar as circunstâncias da morte do aventureiro. Entregue às tentações de seu talento, Ulisses, na companhia de um punhado de seguidores, fez-se de velas sobre o mar aberto. Chegando ao fim do mundo, Ulisses discursou, conclamando os marinheiros: "Somos feitos para perseguir a glória e não para, medrosos, mofarmos na praia". Suas palavras animaram os homens, que dos remos fizeram asas. Logo uma montanha apareceu envolta em brumas e delas um furacão investiu contra o barco. A alegria desmanchou-se em pranto e o mar os sepultou. Ainda não sabemos que fim terão a sra. Kirchner e seus seguidores. Por enquanto conhecemos apenas seus discursos entusiasmados e a imagem de Evita como pano de fundo por ocasião do anúncio da reestatização da YPF. Muito apropriada a evocação da mulher daquele presidente que, depois de estatizar as ferrovias, os portos e os serviços telefônicos da Argentina no final da década de 1940, sofreria o golpe militar de 1955, em meio ao aumento da violência no país. A Argentina passou boa parte de sua vida econômica alternando endividamento exagerado com moratórias. Suspendeu o pagamento de suas dívidas em 1828, 1890, 1982, 1989 e 2001. Depois de 2003, os termos de intercâmbio viraram a seu favor. Entretanto, erros de política econômica elevaram a inflação acima dos 20% ao ano. O governo buscou apoio popular, impondo tetos aos preços dos combustíveis. As consequências fatais? Queda de investimento e falta de produtos. A fuga de capitais forçou o controle de câmbio em 2011, continuando políticas econômicas que tentam camuflar a inflação, a redução das exportações e a queda da popularidade da presidente. O FMI ameaça o país com censura pública pela falta de transparência das estatísticas. Cristina Kirchner vai em frente. Renovando a disputa pelas Malvinas, evoca sentimentos nacionalistas. Aprofundando intervenções, desvia o foco da infraestrutura precária. E cria um círculo vicioso, no qual o governo adota medidas cada vez mais extremas na busca de solução de problemas que suas próprias políticas motivaram. O aumento dos riscos argentinos pode se refletir no Brasil. Não apenas pela ameaça a interesses de empresários que lá investiram, mas também porque o contágio regional parece inevitável quando os investidores internacionais identificam países vizinhos e aliados e falam de uma onda de nacionalizações que, começando na Venezuela, se espalhou para a Bolívia e o Equador. Por isso na semana passada o presidente do México, Felipe Calderón, fez questão de se distanciar das políticas de Kirchner. A opinião internacional acredita que o Brasil e a Argentina estão de tal forma entrelaçados que os erros da política econômica de um acabam se refletindo na economia do outro. Há mais de 120 anos, em 10 de janeiro de 1891, a revista The Economist escrevia a respeito de nossas políticas inflacionárias do final do século 19: "Os resultados dessas políticas ficaram claros no caso da Argentina. Chegou a hora de quem tem um interesse no Brasil tomar nota da direção em que o país vai escorregando". Hoje os analistas financeiros continuam a achar irresistível a comparação das duas economias e relembram que, no passado, governos autocráticos e democráticos presidiram sobre taxas de inflação absurdas. Administrações populistas e neoliberais se regalaram na indisciplina fiscal e no crescimento do Estado. Aqui e lá, ciclos de sobrevalorização cambial sucederam-se, dando lugar ao capital em fuga e às crises externas. Aqui e lá, ciclos da dívida externa atrelaram-se à precariedade de contratos imprescindíveis ao funcionamento da economia de mercado. Todavia lá, mais do que aqui, a voz pouco clara do governo cria o temor de estatização, protecionismo e arbitrariedades. O Brasil, ao contrário da Argentina, promete respeitar contratos. |
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