PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
O ator principiante não teria ido além da primeira peça caso houvesse recusado a sugestão do agitador teatral Paschoal Carlos Magno: que tal trocar o Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn da certidão de nascimento por um nome artístico menos tonitruante? E o sofrível coadjuvante seguiria vivendo papéis secundários se não tivesse criado um personagem fadado ao êxito no mundo real: o jornalista Paulo Francis, em tudo diferente do intérprete ─ um homem amável, de gestos suaves e maneiras gentis.
O gentleman existia entre um texto e outro. Na hora de lidar com palavras, materializava-se a entidade agressiva, de temperamento beligerante, extraordinariamente hábil no ataque frontal, na ironia desmoralizante, no humor ferino, no sarcasmo impiedoso. O estilo claro e contundente na forma e no conteúdo, a abrangência temática, a independência intelectual e a disposição para a correção da rota fizeram desse Paulo Francis o maior polemista do jornalismo brasileiro moderno. Ele continua no topo do ranking, comprova a leitura de Diário da Corte, coletânea de 76 colunas publicadas pela Folha de S. Pauloentre 1975 e 1990.
O país da amnésia endêmica, que esquece a cada 15 anos o que aconteceu nos 15 anteriores, também condena os melhores e mais brilhantes a 15 anos de esquecimento ─ contados a partir da morte física. Francis não escapou dessa temporada no limbo. Em 4 de fevereiro de 1997, quando um enfarte o surpreendeu no apartamento em Nova York, milhares de leitores do colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo e milhões de espectadores do comentarista dos telejornais da Globo e do programa Manhattan Connection haviam transformado o carioca de 66 anos em celebridade nacional. Pois mesmo o mais conhecido jornalista brasileiro teve de esperar até agora pela exumação parcial da obra escrita.
Pior para os jovens, que poderiam tê-lo encontrado mais cedo. As crônicas reunidas no livro resistiram incólumes à passagem do tempo. Muitos textos parecem ter saído ontem da mente brilhante, e continuam de tal forma contemporâneos que poderiam ser publicados na edição de amanhã, sem retoques ou atualizações. A leitura de Diário da Corte mostra com dolorosa nitidez a falta que um Francis faz.
“Se dei uma contribuição ao jornalismo brasileiro, foi a de desmistificar os EUA”, disse em 1983. Fez muito mais que isso. Antes ou depois do correspondente internacional cinco estrelas, existiram o crítico de teatro que achava Paulo Francis “nome de bailarino de teatro de revista”, o crítico de cinema que desancava unanimidades internacionais, o devorador de livros que parecia carregar na cabeça três bibliotecas, o resistente entrincheirado numa página do Pasquim.
E houve, sobretudo, o jornalista político que, ao se livrar de cautelas e amarras impostas por patrulhas ideológicas, se transformou, como Nelson Rodrigues, num “ex-covarde”. É preciso coragem para arriscar-se a ser estigmatizado nestes trêfegos trópicos como “direitista”, “reacionário” ou “conservador”. Mas só quem não teme tal perigo conseguirá enxergar o Brasil como o Brasil efetivamente é.
SÍMBOLO DA JEQUICE
Diário da Corte permite a contemplação de um largo trecho dessa caminhada em direção à maturidade ─ e ao encontro da liberdade que Francis definia com uma citação de Rosa Luxemburgo: “A liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem discorda de nós”. Nós nos tornamos amigos no começo dos anos 90, quando consegui levá-lo para o Estadão. Tive o privilégio de vê-lo em ação logo ao lado, exercitando plenamente o direito de discordar de meio mundo ─ e de manifestar a discordância sem firulas nem ambiguidades.
Diário da Corte permite a contemplação de um largo trecho dessa caminhada em direção à maturidade ─ e ao encontro da liberdade que Francis definia com uma citação de Rosa Luxemburgo: “A liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem discorda de nós”. Nós nos tornamos amigos no começo dos anos 90, quando consegui levá-lo para o Estadão. Tive o privilégio de vê-lo em ação logo ao lado, exercitando plenamente o direito de discordar de meio mundo ─ e de manifestar a discordância sem firulas nem ambiguidades.
Duelou furiosamente com José Guilherme Merquior e Antonio Cândido, brigou feio com Chico Buarque e Caetano Veloso. Não poupou sequer parceiros dos tempos do Pasquim. “Jaguar é um idiota de gênio”, resumiu ao comentar a subordinação do jornal aos interesses eleitorais de Leonel Brizola ─ a quem se aliara no início dos anos 60. Foi uma das muitas mudanças de opinião embutidas na metamorfose maior.
Roberto Campos, por exemplo, foi redimido depois de figurar por dez anos entre os alvos preferenciais da ferocidade de Francis. “Escrevi coisas brutais sobre Campos”, penitenciou-se. “São erradas. Retiro-as”. Em 1993, no jantar de encerramento de um seminário em Porto Alegre de que participou como palestrante, sentei-me com meu amigo na mesa em que estava Roberto Campos. Depois de cumprimentar o ex-inimigo à sua esquerda, virou-se para mim e gracejou: “Quem diria, hein? Agora estou à direita até do Roberto Campos”.
A disposição para mudar de ideia tinha limites. José Sarney, por exemplo, nunca deixou de ser o símbolo da jequice brasileira, filha da esperteza dos que mandam e da ignorância dos que obedecem. “Um amigo me disse que tubarões andaram à caça de Sarney”, escreveu em 2 de janeiro de 1988. “Já comecei a babar diante dessa possibilidade. Aí está uma solução”.
A argúcia excepcional e o ceticismo congênito somaram-se para apressar a decepção com Luiz Inácio Lula da Silva, reiterada na coluna “Admirei Lula quando apareceu”, escreveu em 16 de agosto de 1985. “Enfim, um líder sindical que cuidava do pão e manteiga dos trabalhadores, o que é essencial à modernização capitalista do Brasil. Durou pouco. Lula me parece ter sido envolvido pela grã-finagem esquerdista do Morumbi e adjacências. Hoje, repete as mesmas sandices populistas que ouvimos desde os tempos de Jango Goulart”.
Nas eleições de 1989, apoiou Fernando Collor ─ que reduziria a pó depois das bandalheiras que resultaram no impeachment ─ movido pela ojeriza a dois fantasmas muito caros ao PT: a interferência excessiva do Estado e o aparelhamento da máquina pública. Francis antecipou em mais de 20 anos o cenário deste 2012. O que diria o polemista sem medos se sobrevivesse para saber a que ponto pode chegar um país em adiantada decomposição moral?
Como trataria os ministros que perderam o emprego por safadeza explícita mas seguem impunes e em liberdade? O que faria depois de confrontado com o primeiro presidente da República que nunca leu um livro nem sabe escrever? Como reagiria aos palavrórios sem pé nem cabeça de Dilma Rousseff? Pena que a morte prematura tenha privado o Brasil decente das respostas a essas e tantas outras perguntas. A jornalista Sonia Nolasco, mulher de Francis, decidiu que o marido seria enterrado com aquele par de óculos de lentes grossas sob a testa. Ele partiu com cara de quem continuaria enxergando as coisas como as coisas são.
Augusto Nunes – VEJA.com