O GLOBO - 27/04/12
Foi um dia histórico o de ontem, em que o país ficou sabendo que, sim, as cotas raciais são constitucionais. Ministros e ministras seguiram o voto do relator e o Direito avançou. Mais do que votar, os ministros explicaram o conceito básico de que a igualdade não acontece por inércia, mas por ação. A unanimidade deu à decisão a estatura que a questão exige e eliminou espaço à contestação, por ser vinculante.
O que estava em questão era uma das várias políticas adotadas pelas universidades públicas brasileiras, a da UNB, e o STF foi além: considerou constitucional todas as políticas de ação afirmativa de recorte racial. Foi além ao responder de forma serena e convicta o debate que se travava até recentemente sobre a existência ou não do racismo no Brasil. Sim, ele existe, infelizmente, admitiram os ministros de forma unânime. E por isso o país deve usar instrumentos para superá-lo.
O ministro Ricardo Lewandowski foi seguido por todos os outros ministros. As cotas já fizeram um favor ao Brasil. Elas incentivaram esse debate sobre a existência ou não do racismo no país. Ele foi negado por muitos durante muito tempo e se alimentava basicamente da negação e do silêncio. Desta forma o Brasil veio, desde o início do século passado, consolidando a ideia de uma sociedade multiétnica que convivia harmoniosamente com suas diferenças. Era idílico. Quase tentador acreditar nisso. Mas contra o mito atestavam todas as evidências da cena humana brasileira, todas as estatísticas sociais. O que enganou a tantos por tanto tempo foi o caráter dissimulado da discriminação brasileira.
No início desse debate foi preciso entender os conceitos usados até pelos órgãos de estatística e pesquisa no Brasil. Negro, como o IBGE diz, é o conjunto de pretos e pardos. E por que agregá-los? Porque quem olha todos os indicadores sociais brasileiros verá que a distância entre pretos e pardos é pequena. Seja em mortalidade infantil, expectativa de vida, renda, o que seja. Mas é enorme a diferença dos dois grupos com os brancos. Os números mostram que o IBGE tem razão de pesquisar números de pretos e pardos, e às vezes agrupá-los para efeito de constatação da desigualdade.
Em 2000, antes ainda da adoção das cotas pela Uerj, a primeira universidade pública a adotá-las - a UNB foi a primeira federal - entrevistei os então presidentes do IBGE e do Ipea, Sérgio Besserman e Roberto Martins. Os dois defenderam as ações afirmativas. Era o começo da aceleração do debate. Os órgãos ofereceram ao país estudos e dados para informar a conversa que enfim estava se intensificando.
O movimento negro já vinha defendendo por décadas o tema. Abdias Nascimento, nos anos 1950, com seu Teatro do Negro, fez exatamente uma ação afirmativa: a de criar um espaço para atores e atrizes negros. A defesa desse direito não avançava porque esbarrava na premissa básica: como adotar políticas de combate ao racismo se ele era sempre negado? Nos anos 1990, a reivindicação ganhou corpo. Não por acaso. Como disseram os ministros do Supremo nos últimos dois dias, foi a partir da Constituição de 1988 que se estabeleceu o princípio de que os direitos não são proclamações contemplativas, mas sim fruto de comando constitucional. Não basta declarar direitos, é preciso garantir que ele seja exercido.
Os estabelecimentos de ensino, em meio à controvérsia, passaram a adotar as políticas de forma variada. Alguns com cotas raciais, outros com a mistura de cotas raciais e sociais, outros com ação afirmativa sem cotas, mas com bolsa e apoio ao aluno negro e pobre, como a PUC do Rio.
As dúvidas e medos foram se dissolvendo pela própria prática da política. Alguns argumentaram que era preciso melhorar a escola pública e continuam tendo total razão. O Supremo lembrou que não deve ser uma escolha: é melhorar a escola pública e mudar o critério de acesso às universidades aos negros e pobres, ao mesmo tempo. Num debate na Uerj, anos atrás, olhei para os alunos e reconheci a cara do Brasil. Eles, misturados e sem sombra do ódio que alguns disseram que as cotas acirrariam.
Há ainda muitas dúvidas. É natural. O país é plural. O que o Supremo está dizendo é o contrário do que foi imposto ao imaginário nacional, o do país sem racismo. Ele será assim um dia, desde que reconheça que discrimina e lute contra esse mal. O falso que a elite defendia como verdade é o que o ministro Celso de Mello contou sobre o pronunciamento do Itamaraty nos anos 1970. Em comunicado à ONU, disse que não havia política a ser adotada no Brasil porque o racismo não existia. E era um Itamaraty quase inteiramente branco.
É essa anomalia de um país multiétnico, mas com uma elite monocromática, que começou a ser enfrentada nos últimos anos. Já há sinais de mudança. Já há mais canais de acesso dos negros à elite. Que eles se multipliquem nos próximos anos por ações públicas e privadas. Porque como disse o ministro Ayres Brito "é assim que se constrói um país".
Elas são temporárias, disse Lewandowski. Que bom que são temporárias. Haverá o dia em que não serão mais necessárias. Que belo dia será.