FOLHA DE SP - 15/04/12
Ganhei amigos quando me tornei poeta e descobri que havia outros, vivos, ali perto de minha casa
Não é para me gabar, mas devo admitir que, apesar de alguns percalços, dei sorte na vida. Isso a começar por ser filho de Newton Ferreira, então centroavante da seleção maranhense de futebol, e de Zizi, sensível à poesia e à pintura.
Dei sorte por ter sido, na infância, amigo de Esmagado, Espírito e Canhoteiro, que jogavam pelada comigo na pracinha do Mercado Novo. Canhoteiro chegou à seleção brasileira, e Esmagado tornou-se ídolo da torcida maranhense.
Antes, ele, Espírito e eu, o Periquito, surripiávamos copos nos botecos da cidade e os vendíamos a um quitandeiro da Camboa. Com o dinheiro, aos domingos, íamos ao cinema Éden e jantávamos numa birosca ali perto.
Isso sem falar nos tantos irmãos e irmãs que tive de cuja amizade desfruto até hoje. Ganhei outros amigos quando me tornei poeta e descobri que, fora os poetas mortos da antologia escolar, havia outros, vivos, ali perto de minha casa, na praça João Lisboa. E foi então que me tornei intelectual, membro do Centro Cultural Gonçalves Dias.
E, como se não bastasse, certo dia, fui procurado por uma moça chamada Lucy Teixeira, que nascera em São Luís, mas estudara direito em Belo Horizonte. De lá, mudara-se para o Rio, de onde viera para passar férias com a família e me trouxe a tese com que Mário Pedrosa concorrera à cátedra de estética e história da arte do colégio Pedro 2º.
Foi então que me meteu na cabeça que devia me mudar para o Rio de Janeiro. Ouvi seu conselho e, no ano seguinte, estava eu instalado no quarto de uma pensão de estudantes que ficava na rua da Glória. Logo me tornei amigo de Mário e dos artistas plásticos que frequentavam seu apartamento. E disso nasceria o movimento neoconcreto.
Por sorte minha, Lucy, em Belo Horizonte, tornara-se amiga de Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino, todos já morando no Rio, que era a capital da República e também a capital cultural do Brasil.
Através dela, os conheci e deles me tornei amigo. E ainda por sorte, através deles, conheci Millôr Fernandes, já então famoso por suas charges na revista "O Cruzeiro", sob o pseudônimo de Vão Gôgo.
Foi então que me casei com Thereza Aragão e me mudei para Ipanema, onde já morava Millôr e onde morreria recentemente, no mesmo edifício coberto de pastilhas verde-claro, na esquina da Vieira Souto com a Aníbal de Mendonça.
Passamos a nos encontrar quase todas as manhãs, naquele ponto da praia situado atrás do Country Club, já que meu apartamento era na Visconde de Pirajá, esquina com a Henrique Dumont. Àquela altura, eu trabalhava na revista "Manchete", chamado que fui por Otto, a conselho de Millôr, quando ele soube que me haviam demitido de "O Cruzeiro". Isso é ter sorte ou não é?
Outro período em que eu e Millôr estivemos mais próximos foi no teatro Opinião, durante a montagem de "Liberdade, Liberdade", peça sua e de Flávio Rangel. A ideia de escrevê-la nasceu quando os dois assistiram, ali, ao show "Opinião", que dera início às atividades do grupo, o primeiro espetáculo a contestar a ditadura militar. "Liberdade, Liberdade" foi o segundo.
A peça era constituída basicamente de frases em defesa da liberdade da autoria de filósofos e estadistas, de Platão a Voltaire e George Washington. O regime, ainda que incomodado, hesitou em proibir o espetáculo, já que teria que censurar gente tão ilustre.
É claro, porém, que Millôr não iria se contentar apenas com citar frases célebres de pensadores sisudos. Por isso mesmo, valeu-se do fato de que as cadeiras do teatro rangiam a cada movimento do espectador para fazer a seguinte piada.
"Neste momento, achamos fundamental que cada um tome uma posição definida, seja para a esquerda, seja para a direita. E que fique nela! Porque senão, companheiros, as cadeiras do teatro rangem muito e ninguém ouve nada."
A peça foi um sucesso. Por isso mesmo, os milicos, inconformados, mandaram capangas armados tumultuarem o espetáculo e possivelmente tirá-lo de cartaz.
Descobrimos o golpe a tempo e, com a ajuda de Hélio Fernandes, diretor da "Tribuna da Imprensa" e irmão de Millôr, levamos para lá a polícia, que os desarmou. A peça seguiu sua carreira. Algum tempo depois, uma bomba destruiria parte de nosso teatro. Por sorte, ninguém morreu.