O Estado de S.Paulo - 05/10/11
Em plenos 18 anos, estava indo me apresentar no 3.º Regimento de Infantaria em São Gonçalo. De minha casa, em Icaraí, para São Gonçalo eu deveria tomar dois ônibus naqueles tempos que todos os rapazes eram obrigados a "servir no Exército" - uma retribuição e um choque desagradável de igualitarismo que deixava os filhinhos de mamãe e suas famílias preocupados. Era um pagamento por termos nascidos num país sem tufão, furacão, vulcão, Rock in Rio e terremoto, mas com inflação e clientelismo explícito e oficial. Naqueles dias existiam mesmo os "donos do poder" de Raimundo Faoro e ninguém ousava denunciá-los, exceto para dar um "golpe de Estado" ou propor a "revolução" a ser feita pelo Estado.
No meio do caminho eu percebi que havia algo errado. Comuniquei minha desconfiança a um senhor de cabelos pretos, rosto vincado de rugas e roupas simples que estava sentado ao meu lado. Será que estou indo mesmo em direção ao 3.º Regimento de Infantaria?, perguntei, aflito. Não, meu jovem, você deve saltar no próximo ponto e pegar outro ônibus. De quebra, esse senhor pediu para ver meus papéis de convocação. Leu tudo com cuidado e sentenciou: vá logo porque se você não aparecer por lá hoje, fica insubmisso! Ou seja, você recusa submeter-se a um dos mais sérios mandamentos da vida nacional: servir à sua Pátria!
Fui salvo de insubmissão (naquele época, pior do que essa nossa trivial corrupção - vejam com o Brasil mudou) por um desconhecido. Talvez um anjo da guarda.
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No ano de 1962, sigo para uma visita rápida à Aldeia do Cocal, morada dos índios gaviões, situada a oeste do médio Rio Tocantins. Queria rever alguns dos meus instrutores na língua e na cultura desses nativos de língua jê que havia estudado em companhia do meu colega Julio Cezar Melatti, entre agosto e novembro do ano anterior.
Chego à aldeia e, depois dos rituais de recepção chorosos que surpreendem e emocionam, encontro um ambiente sombrio. Logo descubro o motivo da tristeza. Cerca de 20 horas antes, uma mulher havia morrido ao ter uma criança. Como não havia na aldeia nenhuma outra amamentadora, a criança - segundo o costume - fora enterrada com a mãe. Fui levado ao túmulo: um montículo de terra coberto com esteiras. Um rapaz comentou que se ouviu por algumas horas o choro da criança. De coração partido ouvi a justificativa: sem leite materno, era mais humano enterrar a criança com a mãe, pois ela morreria de fome numa aldeia sem leite materno. Ademais, não era um ser humano completo naquela cultura onde humanos e animais são feitos gradativamente.
Fiquei agradecido por ter sido poupado de testemunhar o fato. Tivesse chegado antes, teria que tomar uma atitude e lidar com a incomensurabilidade de valores e pontos de vista. Algo maravilhoso em salas de aulas e livros de filosofia, mas - para tornar curta uma longa história - promovedor de dramáticas mudanças de rumos quando acontece ao vivo e em cores.
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Estou a bordo de um avião nos Estados Unidos, num voo de Chicago para Los Angeles onde vou fazer uma conferência. Tudo no avião desperta confiança e não há como apagar o sentimento de total segurança quando ouço a voz calma e grave dizendo o tradicional "Bom dia, aqui fala o Comandante"... para, em seguida, confirmar a normalidade do tempo. Coloco o cinto, pego um livro e, em seguida, sinto o susto tomar conta de todos. Sinto o sobressalto da freada, olho pela janela e vejo passar como um relâmpago, na pista que iríamos cruzar, um outro avião.
Alguns rezaram, outros explodiram em pasmo. Eu pensei na sorte e num anjo da guarda.
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Meu filho Renato foi e é um excelente excursionista. Em junho de 1986, dois dos seus amigos e ele saem para explorar uma montanha que coroa a região oceânica de Niterói, onde moro. No final do dia entra um sudoeste com seus ventos fortes e tudo fica coberto de frio e densa neblina. O relógio marca 5, 6 e 7 horas da noite e Renato e seus amigos não chegam. Convocamos o Corpo de Salvamento. Sigo com eles até o local por onde se chega ao alto do morro, situado numa trilha que tem como cenário um cemitério ironicamente chamado de "Parque da Colina". Algo dentro de mim diz que meu filho está morto. Passamos, Celeste e eu, a noite em claro. Ela tricotando como Penélope; eu lutando contra meus pressentimentos como um personagem de Dostoievski. Assim que o dia clareou, o pai de um dos rapazes e eu seguimos para o parque onde os bombeiros nos esperavam. Mal nos falamos quando, por entre as covas, surgem os três rapazes molhados de chuva e sorrindo de felicidade.
Eu reencontro meu filho e, no momento que o vejo, um clarão explode dentro da minha cabeça com as palavras: "Deus existe!". Eu tenho um anjo da guarda.
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Existem anjos da guarda como dizem os religiosos e os filmes de Frank Capra e Wim Wenders? Um lado meu diz que não, um outro que sim. O problema é que eu não sei em que lado acreditar.