Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 07, 2011

Vida arriscada João Ubaldo Ribeiro

O Estado de S.Paulo
De vez em quando sai uma matéria mostrando como, entre as profissões
mais perigosas, está a de jornalista. No meu caso, acho que apenas
enfrentei uns periguetes de quinta categoria, que não dão para adornar
nem uma notinha biográfica e fazem parte do ramerrão de qualquer um
que haja trabalhado em redações antes do computador. (Outro dia,
visitei uma redação toda eletrônica, quieta, silenciosa e álgida e
senti bem na carne o que é viver duas eras distintas. Diante das
velhas redações de máquinas mecânicas, fumaça e berreiro, as de hoje
são CTI"s - e de fato essa que vi me lembrou a ambiência de um CTI. É
a idade mesmo, mas tenho saudades de minhas velhas redações e o
teclado de meu computador faz todos os barulhinhos das antigas
máquinas mecânicas, me rejuvenesce.) De qualquer forma, no meu tempo
de foca, o pessoal falava muito em jornalistas do interior que haviam
sido obrigados a comer a página de seu jornal que continha uma opinião
considerada descortês, pelo coronel da área. Na capital, a gente fazia
cara séria, quando os colegas do interior vinham relatar seus dramas,
dávamos abraços de solidariedade e denunciávamos o abuso.

Não deixava de haver certa valentia nessas denúncias, pois alguém
sempre lembrava a história, fictícia ou não, de um jornalista da
capital ser também obrigado a almoçar um artigo seu. Conheci de longe
um colega sertanejo que, segundo se comentava à boca não tão pequena,
comera verso por verso de um poema satírico com que desgostara o
coronel de sua terra. A gente o tratava com deferência e respeito,
mas, sendo a natureza humana o que é, todo mundo dava uma risadinha
disfarçada quando ele passava - devia ser por causa do apelido que ele
pegou, pelo qual era universalmente conhecido e o qual não vou
reproduzir aqui, bastando que se saiba que era um verbo chulo seguido
da palavra "rima". Até no enterro dele usaram esse apelido.

Quando o jornalista, além de repórter, é fotógrafo ou cinegrafista, a
barra pesa muito. Sempre que vejo esses documentários épicos sobre
explorações em águas profundas ou entre tubarões, escaladas de picos
inacessíveis, intimidade de feras selvagens e coisas assim, só penso
nos cinegrafistas. Todos eles deviam receber medalhas por bravura, mas
espelho meu comportamento em relação a esse assunto no exemplo dado,
antes mesmo de eu nascer, pelo finado Quininho Viola, pioneiro do
jornalismo em Itaparica.

Deu-se que Itaparica, que nessa época era bem mais próspera que depois
que a prosperidade chegou, foi visitada por um circo, que, entre
outras atrações, contava com um leão chamado Gengis Kan. Não sei bem
como é que foi a conversa, mas o dono do circo encomendou a Quininho
um cartaz e um anúncio do circo. A estrela tinha que ser o leão,
besta-fera invencível, rei de todos os animais. Num particular havido
a portas fechadas, o dono do circo esclareceu a Quininho certas
verdades sobre Gengis Kan. Era cego de um olho e meio cego de outro.
Não tinha dentes, não tinha garras, mais pigarreava do que rugia e
vivia de uma dieta de mingau de aveia com banana e os restos de comida
que lhe apetecessem. Para levantar uma pata era um custo.

Quininho se reproclamou um homem arrojado, jornalista valente, não ia
correr da presa. E, bem no horário estabelecido, lá estava ele no
circo. Como é, haviam providenciado o escudo que ele encomendara? Sem
escudo, nem pensar. E o debate encheu a noite, até que Quininho disse
que ia lá atrás, pegar a máquina, que era daquelas grandalhonas que
pareciam um farol. Demorou bastante lá atrás, mas voltou. Botou só
metade do corpo para dentro do recinto onde Gengis Kan já dormia o
oitavo sono, arregalou os olhos e sussurrou:

- Amarraram bem o bicho?

Sim, não houve nem fotografia, nem anúncio, nem cartaz. Ainda peguei o
finado Quininho vivo e ele me explicou que não era nada daquilo que
contavam, ele não era um fotógrafo comercial, apenas isso. E o leão
era um animal estrangeiro em nossa fauna, não havia por que
prestigiá-lo, ninguém aqui era Tarzan. Se fosse uma onça, aí sim, a
conversa seria outra. Infelizmente, durante todo esse tempo, nem circo
nem onça apareceram mais em Itaparica, de forma que de Quininho só
resta mesmo o exemplo a seguir.

Munido de tais precedentes e tal filosofia, acredito-me bem distante
do epicentro dos perigos jornalísticos. Se já era ruim de reportagem
quando fui repórter, pior hei de ter ficado, com o tempo. E aí me
limito, às vezes não sem certa melancolia de tanto ver chover no
molhado, a denunciar ou criticar o que julgo merecedor. O governo, os
governantes e o Estado são alvos permanentes porque estão envolvidos
em tudo no Brasil, e tomam tal parte em nossa vida, a começar por
impostos, que acabam responsáveis por tudo o que de mau acontece.

Pronto, qual é perigo que oferece mais esta vida? A época dos
escritores aventureiros já passou, desde Jack London e Hemingway. Até,
embora se trate de outro tipo de aventura, a voga do Castañeda já
passou. É verdade, penso eu, com a serenidade de quem deixou para trás
as fases mais arriscadas da vida. Ou não? Deixei nada. O noticiário
norueguês me lembra outra vez de que tenho a cara errada em toda
parte. Tenho cara de turco na Alemanha, cara de árabe na França, cara
de hispano nos Estados Unidos, cara de latino-americano na Espanha,
cara e fala de brasileiro em Portugal, cara de nordestino, cara de
mestiço, um desastre em toda a linha. Mas não será por isso que eu vou
desistir de viajar. Eu sou aquele sem bigode, de cabeça raspada e de
olhos verdes, lá no fundo. Espero me acostumar às lentes de contato,
porque olhos castanhos, sopra-me do além Quininho, já são meio caminho
andado para tomar um tirambaço europeu. A Humanidade não progrede, me
garantiu também ele.

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