O GLOBO
Não posso considerar-me devoto dela, mas, antes de mais nada, desejo homenagear a santa de hoje, a piedosíssima Santa Luzia. É a protetora dos deficientes visuais e, pelo Brasil afora, muitas cidades e paróquias estão fazendo festa para ela. Todo ano, em Salvador, formam-se filas diante da fonte dela, porque lavar os olhos em sua água é perspectiva certa de cura.
Em Itaparica, o Mercado Municipal, não por acaso, tem seu nome. Perdese a conta dos milagres e graças atribuídos a ela na ilha, dentre os quais seleciono apenas um exemplo, somente para vocês terem uma ideia que talvez os convença a procurar sem demora seus santos padroeiros, até porque o que vou narrar abaixo envolveu a ação simultânea de dois santos.
Deu-se que Chiquinho de Enedina, depois de anos como sineiro, começou a não escutar mais quase nada, além de padecer de uma cruel zuzuia, onomatopeia que descreve com felicidade uma zumbideira no zuvido. Zuzuia essa que só passou quando ele se pegou com o santo padroeiro dos surdos, por acaso xará dele, o grande São Francisco de Sales. Quanto tempo o santo levou para tomar uma providência, não se sabe. O que se sabe é que foi mais ou menos na época em que Jacob Preto lavou os olhos com água da fonte de Santa Luzia todo dia durante três meses, ao final dos quais a santa apareceu a ele num sonho.
— Seu Jacob, me compreenda uma coisa — disse a santa —, eu dei grande valor às suas rezas e suas lavagens de olhos na água da minha fonte, de maneira que, de hoje em diante, o senhor vai ter a melhor vista do mundo, ou não me chamo Luzia.
Dito e feito, porque, alguns dias depois, os dois conterrâneos estavam à beira do cais, apreciando o nascer do sol, quando Jacob apertou os olhos e mirou na direção das torres da Igreja do Bonfim, em Salvador, do outro lado da Baía de Todos os Santos.
— Iéguas! — exclamou ele, usando a interjeição mais comum na ilha. — Iéguas! Quando Santa Luzia fala, pode escrever! Você acredita que daqui eu estou vendo os pombos na torre da igreja? Estou vendo como se fosse aqui, tem um pretinho ali do lado esquerdo, dois cinzentinhos...
— Bom, ver eu não estou vendo, não, que meu santo é outro — disse Chiquinho. — Mas estou ouvindo as pisadinhas deles.
Pois é. Concedo que, no caso, talvez a ação dos santos, já por si mesma poderosa, se robusteça ainda mais com a afamada radioatividade que envolve toda a ilha, nunca se sabe.
Lamentavelmente, não posso pedir a ajuda deles, pois suas especialidades não se endereçam a minhas necessidades e não estou mais na ilha.
Estou, na verdade, me preparando para, depois de intensa preparação psicológica, durante a qual muitas vezes temi o fracasso, voltar a caminhar no calçadão — é o que estou lhes dizendo, em absoluta primeira mão.
Cumprimento-me por ter persistido em calçar os tênis sozinho. Estive à beira de pedir ajuda e houve um momento em que achei que somente os bombeiros resolveriam o problema, mas terminei por vencer e eis-me agora pronto para o grande reingresso.
Mas nem chego perto da rua. Antes de sair, já dá para perceber que o tempo não está colaborando e chove aos potes. O jeito é esperar, talvez ir para a beira do terraço, para pelo menos assistir ao oscilar satisfeito das plantas debaixo da chuva.
Quem vejo lá no canto, impassível e como sempre fazendo pose em cima da cerca? Isso mesmo, Herculano, o gavião que andava sumido havia meses e que já fora dado como finado pelos mais pessimistas. Parecendo que ficou ainda maior do que já era, talvez estivesse voltando de uma excursão recreativa ou tivesse viajado para constituir família. Também como sempre, ignora minha presença, a não ser que eu chegue excessivamente perto. Se eu faço isso, ele me olha como quem diz que só não me dá uma unhada no meio da testa porque está sem saco, abre as asas e decola com desdém.
O regresso dele deve ser um bom sinal. Entre os muitos livros loucos que já li nesta vida airada, estavam alguns que falavam nos augúrios da antiguidade.
Mas só me lembro, não sei por quê, dos augúrios com corujas e mochos, nada com gaviões ou águias.
Decido então que a presença de Herculano é um bom presságio, tudo de bom acontecerá na minha nova temporada no calçadão. Cumprimento-o à distância, ele parece reconhecer minha saudação, embora não a retribua.
É tudo auspicioso, sim, até mesmo a chuva passou. Já em passo acelerado e decidido, tomo o rumo da orla.
Não posso reclamar, quando, ainda antes de chegar à primeira esquina, vem na direção oposta à minha uma senhora que conheço de vista aqui mesmo na rua e estaca, fazendo sinal para que eu também pare. Como ainda não estou oficialmente em caminhada, as normas permitem a interrupção.
Ela me dava parabéns, era o primeiro dia da volta, não? E o capenguinha, eu estava pronto para o capenguinha? O capenguinha, como pude esquecer dele? Meio sem graça, despedi-me dela, andei devagar e pensativo até o calçadão.
Já do outro lado da rua, examinei os caminhantes, não havia sinal dele.
Sem querer cair na armadilha da pressa e da precipitação, olhei de novo. Não, capenguinha nenhum — e, aliviado, comecei a andar. Mas que é isso que pressinto aqui atrás de mim, esses passinhos, que serão? Não tive tempo de pensar muito e — zupt! — eis que me passa ele, saído de não sei onde, a perninha curta em rápido movimento de compasso apoiado na perna mais comprida, e aqui estou eu comendo poeira outra vez. Acho que vou deixar a caminhada para as resoluções de ano novo.