Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 19, 2009

Memória Paul Samuelson

Memória

Os fatos derrubam teorias

Paul Samuelson quis dar à economia o mesmo rigor metodológico
da termodinâmica. Ele morreu na semana passada, aos 94 anos,
na dúvida se conseguiu, mas com a certeza de ter insuflado
esperança em uma disciplina lúgubre

Robert Spencer/The New York Times
SAMUELSON NO MIT
Consultor de presidentes, ele nunca aceitou emprego
em governos para preservar a liberdade de pensar e falar

Morreu aos 94 anos, na semana passada, o americano Paul Anthony Samuelson, o maior economista acadêmico da atualidade e um dos grandes sistematizadores do conhecimento de todos os tempos. Em um universo em que a competição e a polarização são as regras, pouco se ouviu falar de debates pró ou contra Samuelson. Tampouco se formaram igrejinhas de seguidores prontos a esgrimir dados, teoremas e axiomas contra os profanadores do pensamento do mestre. Isso em um campo em que os adoradores do economista John Maynard Keynes (1883-1946) travam uma guerra de extermínio contra os adeptos do fundador da especialidade, Adam Smith (1723-1790), com os dois lados adotando sucessivamente as mais diferentes denominações. Os keynesianos começaram sendo chamados de "economistas marxistas" por defenderem maior presença do estado na atividade econômica, em especial na alavancagem dos mercados pelo aumento dramático de gastos públicos nas recessões mais profundas. Depois eles assumiram os epítetos de estatizantes, intervencionistas e, mais recentemente, "planejadores". Smith deu início à linhagem dos economistas para quem os mercados sempre chegam à solução dos problemas econômicos mais complexos desde que deixados em paz pelos governos. Seus seguidores são os monetaristas, os "Chicago boys", os individualistas e gananciosos.

Filho de imigrantes judeus vindos da Polônia, Samuelson nasceu em Gary, em Indiana, cidade que é o berço de Joseph Stiglitz, aluno de Samuelson e ganhador do Nobel de Economia. Há países, como o Brasil, que não têm sequer um ganhador do Nobel. Gary tem dois – e de economia. Antes que brotem teorias, ou até para incentivá-las, Michael Jackson, o astro pop morto em junho, também nasceu em Gary. Samuelson, o primeiro americano a ganhar o Prêmio Nobel de Economia, em 1970, pendeu claramente para o lado de Keynes. Foi consequência óbvia de sua tentativa de tratar a economia com o rigor da física, mais especialmente da termodinâmica. A segunda lei da termodinâmica é a entropia. Essa lei explica por que um prato de sopa escaldante deixado sobre a mesa em pouco tempo terá a mesma temperatura do ambiente. Transposta para o campo de estudos de Samuelson, a entropia informa que, sem governo, os mercados tendem a esfriar entropicamente. Ele foi consultor de presidentes, primeiros-ministros, cabeças coroadas, mas sempre recusou cargos no governo. Queria liberdade de pensar e dizer o que pensa. "Passei no máximo uma semana em Washington", dizia ele com orgulho. Por essas razões, conseguiu deixar o maior legado que se pode esperar de um sábio, o exemplo da obsessão pela busca da verdade e as ferramentas teóricas para alcançá-la.

Suas contribuições são notáveis e iluminaram quase todos os campos da economia – a teoria do consumo, o comércio internacional, a macroeconomia e as finanças. Ele fez a grande síntese econômica de todos os tempos, reunindo em um único grande e coerente painel de equações matemáticas e princípios lógicos o que antes eram apenas visões esparsas sobre os eventos de trocas entre as pessoas, empresas e países. Durante meio século, sua obra didática Economiafoi o livro-texto adotado em quase todas as faculdades dos Estados Unidos e do mundo. Traduzido em 41 idiomas, Economia teve dezenas de edições e fez Paul Samuelson multimilionário. Em artigo recente no Journal of Economic Perspectives, Mark Skousen observa que as sucessivas edições do livro-texto de Samuelson "são para o historiador econômico o que as diversas camadas geológicas são para o paleontólogo em busca de fósseis". Skousen mostra que, a cada nova edição, Samuelson tirava a ênfase ou até suprimia autores e ideias superadas pela vida real, de modo que as edições passadas de seu livro funcionam como um "retrovisor a refletir antigas crenças dos economistas". Seu outro livro seminal é Foundations of Economic Analysis (Fundamentos da Análise Econômica), escrito em 1947 e que também recebeu diversas atualizações. Nada lhe deu mais satisfação e projeção mundial, porém, do que a cátedra no MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

Fotos Corbis/Latin Stock

SAMUELSON SOBRE KEYNES...
"Foi cientificamente o maior de todos no século XX. Só Adam Smith e Léon Walras podem ser mencionados em um mesmo fôlego junto com ele"


Em seu derradeiro artigo, Samuelson, a pretexto de analisar a ascensão formidável da China no cenário mundial, deixou registrado, bem à sua maneira direta e sem rodeios, onde ele se via na escala hierárquica dos maiores economistas da história: "A economia deixou de ser uma ciência lúgubre (dismal) para ser a ciência da esperança". O historiador vitoriano Thomas Carlyle criou a expressão dismal science em um ensaio em que, ao criticar as previsões catastróficas de Thomas Malthus sobre a inevitabilidade da fome no mundo, condenou a visão econômica ancorada em teorias imutáveis. Samuelson colocou os fatos como prioridade e, assim, deu esperanças à economia.

A autoestima condoreira de Samuelson é lendária. Ele não perdia uma chance de enaltecer suas conquistas intelectuais – e, reconheça-se, usava a mesma ênfase e generosidade para falar dos colegas que admirava. Apresentar-se como o responsável pela transformação da profissão de economista não é egolatria. É uma constatação que já havia sido feita universalmente muito antes pelas melhores cabeças do ramo. Ao pôr os fatos e a vida real acima das teorias, ele libertou a economia das teorias e das armadilhas esquemáticas, dando-lhe a possibilidade de um dia, quem sabe, atingir, se não a exatidão, pelo menos a nobreza das ciências objetivas. É quase impossível resumir as conquistas de Samuelson sem cair na simplificação. Sua morte, no entanto, motivou dezenas de ilustres colegas a tentar encapsular sua carreira de sete décadas em expressões curtas e metafóricas. A saída mais encontrada foi compará-lo a luminares científicos de outras áreas. O economista Michael Szenberg comparou-o a sir Isaac Newton (1643-1727), o gênio que encontrou na mecânica celeste sequências matemáticas tão consistentes que permitiram sua tradução em Leis Naturais. Samuelson foi herdeiro de Newton no uso da matemática como linguagem. E o foi também por reconhecer que o avanço revolucionário proporcionado pelo seu trabalho equivale a um pequeno passo na direção certa ("...encontrei uma concha mais bonita ou um seixo mais liso na praia de um oceano de verdade ainda a ser descoberto", escreveu Isaac Newton). A comparação com Albert Einstein (1879-1955) também foi muito usada. A exemplo de Einstein, o pensamento de Samuelson permitiu inferir a existência de certos fenômenos econômicos muito antes que eles pudessem ser efetivamente observados. Samuelson foi também comparado ao maestro italiano Arturo Toscanini, morto em 1957. Toscanini exigia que sua orquestra tocasse "música, e não notas". Na teoria econômica, essa exigência equivale a só construir princípios abstratos depois da cuidadosa observação e análise dos fatos – e não o contrário. Isso implica abandonar a teoria quando os fatos teimam em desmenti-la, o que requer a humildade de nunca parar de aprender de um Paul Samuelson.

...E SOBRE KARL MARX
"Está na linhagem de Maomé
e de Jesus Cristo, e não da ciência.
Os críticos ignoraram suas
contribuições econômicas
e os adoradores idolatram
seu paradigma estéril"

Arquivo do blog