Sobre o século 21, um respeitado historiador inglês, Hobsbawm, observou que este teria começado com cerca de uma década de antecedência: "o breve século 20" teria tido seu tardio início com a Grande Guerra de 1914 e terminado com os eventos do início dos anos 90. Tais eventos parecem dar razão a Hobsbawm: a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha; o colapso da URSS e a fragmentação de sua vasta zona de influência em mais de duas dezenas de países; a emergência da China como potência regional e global, após mais de 12 anos de reformas e de integração com a economia mundial; o avanço do processo de integração europeu com o acordo de Maastricht (1991) e a decisão de lançamento do euro ainda nos anos 90; o início das reformas econômicas modernizadoras na Índia; a renegociação da dívida externa do setor público de quase duas dezenas de países "emergentes"; e a transformação dos EUA de país credor do resto do mundo para a posição de devedor, agravada a partir de 1991, quando passou a incorrer em déficits crescentes em seu balanço de pagamentos.
Em seu conjunto, esses fatores levaram a uma expressiva redução da aversão ao risco e à uma extraordinária ampliação das oportunidades de comércio e investimento, doméstico e internacional, em áreas que passavam a se integrar à economia global. Adicionalmente, avanços tecnológicos nas áreas de informática e telecomunicações propiciaram antes impensáveis reduções de custo e aumentos de produtividade. E permitiram que, ao longo dos últimos 20 anos, centenas de milhões de pessoas passassem a ter acesso, em tempo real, a informações sobre eventos correntes, e sobre padrões de consumo, níveis de renda e riqueza, estilos de vida em outros países, levando a uma revolução de expectativas de milhões de recém-integrados à economia global.
Do ponto de vista econômico-estrutural, portanto, Hobsbawm estava certo: parece ter ocorrido uma reacomodação de placas tectônicas na economia mundial por volta do início dos anos 90, gerando um período sem precedentes de expansão da economia global, do comércio internacional (volumes e preços) e dos fluxos internacionais de capitais privados. Um ciclo de expansão global que, como notou Ken Rogoff, foi "o mais intenso, o mais longo e o mais amplamente disseminado da história moderna" - e cujo auge, é ainda Rogoff quem nota, foi alcançado no quinquênio 2003-2007 (algo que o lulo-petismo faz questão de ignorar). Auge de exuberância que, sabe-se bem hoje, contribuiu em boa medida para a grande crise global de 2008-2009, cujas consequências ainda se estarão fazendo sentir por alguns anos à frente.
O combate ao pânico avassalador que tomou conta de mercados financeiros e de governos em fins de 2008, e a busca da retomada da atividade econômica nos países desenvolvidos, foi feito à custa de uma historicamente sem precedentes intervenção do poder público - Tesouros e bancos centrais -, em termos de políticas expansionistas, fiscais, parafiscais e monetárias. Circunstâncias excepcionais exigem respostas excepcionais. Como Keynes sabia, e como sabem hoje os governos dos países desenvolvidos, essas medidas devem ter caráter transitório, até que se restabeleça a indispensável confiança dos investidores e consumidores privados.
Mas essas extraordinárias respostas de governos - que estão permitindo uma gradual superação da crise - têm levado ao que parece ser uma nova leitura de Hobsbawm: o século 20 estaria terminando só agora, com esta crise - e com o novo "paradigma" que emerge da forma como a crise vem sendo enfrentada.
Na sua vertente mais "econômica", o suposto "novo paradigma" conduz a uma reafirmação do papel do Estado, não apenas na superação da crise por meio de medidas extraordinárias - e temporárias, de caráter "contracíclico" -, como também do papel renovado de um Estado que passa a ser o elemento essencial para assegurar, ao longo do tempo, o desenvolvimento econômico e social acelerado.
Na sua vertente mais "política", o novo paradigma procura apresentar a crise atual como o último prego no caixão do "ideário" que teriam representado, nos anos 80 do século passado, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A "derrota" de ambos - e seus seguidores, vistos como legião - só agora teria sido consumada com o enterro, definitivo, das ideias de "Estado mínimo", da "desestruturação do bem-estar social" e do "fundamentalismo de mercado" - e de seus seguidores no Brasil, que seriam, para os militantes do lulo-petismo, em princípio, quaisquer oposicionistas.
A vertente "econômica", sobre o papel ampliado do Estado e de suas empresas, pode e deve ser amplamente debatida, esperemos que com um mínimo de honestidade intelectual e respeito aos fatos e aos outros. A vertente "política" mencionada no parágrafo anterior, ao contrário, é simplesmente um caso de flagrante desonestidade e indigência intelectual, desrespeito aos fatos e aos outros, tentativa de fazer com que uma mentira, e sua rotulagem barata e demagógica, se mil vezes repetida, possa chegar a assumir foros de veracidade para desavisados e adeptos de estereótipos e maniqueístas palavras de ordem.
É, no entanto, exatamente por conta desse exacerbado clima de palanque que vozes sensatas precisam insistir - como no texto que abre este artigo - na importância crucial de lançar um olhar objetivo para 2011 e adiante - o pós-Lula -, com foco nos problemas que este governo (como, aliás, fazem todos os governos) deixará para seu sucessor. Qualquer que seja seu nome, este não se chamará Lula.
Feliz Natal e bom 2010.
Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso E-mail: malan@estadao.com.br