Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Israel Guerra total contra o Hamas

A guerra dos quatro dias

Mas que pode durar muito mais: Israel ataca os radicais
do Hamas na Faixa de Gaza, com terríveis consequências
para a população civil. É mais uma prova de como
é necessário – e difícil – um acordo de paz


Vilma Gryzinski

Hatem Omar/AP

CHOQUE E ESPANTO
Família palestina foge de bombardeio: mais de 370 mortos, dos quais sessenta civis



VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem

Quadro: Um mar de encrencas

Exclusivo on-line
Em profundidade: A Questão Palestina

A lógica tribal tem regras simples: se você me ataca, eu ataco de volta. Se quiser me destruir, eu o destruo primeiro. Se eu puder, uso dez vezes mais violência. Ou cem. Ou mil. Sei que você vai querer se vingar, mas estarei preparado, à espera. Eternamente, se for preciso. Essa é a lógica da guerra dos quatro dias, mas que pode se estender, desfechada por Israel contra um dos lugares mais desgraçados do mundo, a Faixa de Gaza. O pedaço estreito de terra desértica e superpovoada ficou ainda mais perigoso depois que o Hamas, uma organização nacionalista permeada pela ideologia dos radicais muçulmanos, o transformou numa espécie de segundo estado palestino – o primeiro fica no território conhecido como Cisjordânia e é governado pelo Fatah; os dirigentes de cada um dos pedaços de uma futura e já tão alquebrada nação palestina se odeiam.

Desde que o Hamas tomou o poder em Gaza, Israel bloqueia o território, com as tristes e previsíveis consequências para a população civil, privada de quase tudo. Houve uma trégua nos últimos meses, mas ela acabou quando o Hamas voltou a disparar foguetes, toscos embora perigosos, contra cidadezinhas israelenses fronteiriças. Invocando o direito de garantir a segurança dos moradores da região, no sábado 27 Israel lançou uma série arrasadora de bombardeios contra Gaza. Os alvos visavam à estrutura de poder do Hamas – a central do aparato de segurança, o quartel da polícia, depósitos de armas, lugares onde dirigentes da organização trabalham e vivem. Prédios inteiros foram, literalmente, evaporados. Bombardear cidades só pode ter resultados terríveis. Dos mais de 370 mortos em quatro dias, cerca de sessenta eram civis, inclusive crianças, nas mais desoladoras das cenas. Cinco irmãs, todas menores, morreram numa mesma casa. Em outra, vizinha de um dirigente do Hamas, mais três meninos pereceram. Os foguetes vindos de Gaza persistiram. Morreram quatro israelenses, incluindo uma mulher beduína.

Fotos Mohammed Abed/AFP e Thaer Al-Hasani/AP

O MASSACRE DAS INOCENTES
As cinco irmãs mortas num campo de refugiados

Na linguagem diplomática, esse tipo de reação é chamado de uso desproporcional da força. Na lógica tribal, é autodefesa perfeitamente admissível e moralmente justificável, tanto que a maioria dos israelenses apoiou os ataques. Evidentemente, existem motivos estratégicos que vão além do direito de proteção às localidades alvejadas pelo Hamas: Israel quis desfechar um golpe estrondoso contra seu inimigo mais próximo e reafirmar aos mais distantes que continua a ter poder bélico incontestável, dissipando a imagem dúbia deixada pela última operação de grandes proporções, contra o Hezbollah, no Líbano, em 2006. E quis fazê-lo antes da posse de Barack Obama, que se tornará presidente dos Estados Unidos com um fato consumado: os inimigos de Israel estarão mais raivosos do que nunca, tanto na retórica quanto, se conseguirem, nos atos. E nesse caldeirão de raiva ficará mais difícil para os americanos obter dos israelenses as concessões necessárias para um cada vez mais complicado acordo de paz.

É tortuoso, mas quem conhece o Oriente Médio não fica mais espantado com nada. O fulcro do problema é que dois direitos à existência nacional se sobrepõem, criando uma situação em que os dois lados estão certos quando lutam pela própria sobrevivência e erram quando vão a limites extremos para defendê-la. As razões de cada um são conhecidas. A criação de Israel decorreu da perseguição aos judeus na Europa e foi legitimada pelo mais hediondo dos crimes, o genocídio cometido pela Alemanha nazista. Quem pode negar aos judeus o direito de ter um país forte e protegido, e, numa espécie de justiça histórica, no mesmo lugar onde havia existido dois milênios antes? Ao ser erigido, no entanto, o estado de Israel desencadeou a privação dos habitantes árabes, que perderam casas, terras e identidade. Quem pode negar a injustiça histórica cometida contra os palestinos? Ou a sua legítima aspiração a um estado independente?

ATAQUE AO QG FUNDAMENTALISTA
Prédios usados pelo aparato de segurança evaporaram

Já naturalmente difícil de resolver, o confronto entre Israel e palestinos ganhou novas camadas de complicação com a ascensão do Hamas, uma organização de inspiração religiosa (veja quadro). Hoje, existem duas "entidades" palestinas. Uma comandada pelos herdeiros de Yasser Arafat, que fez o longo percurso rumo à aceitação de Israel e está baseada no território conhecido como Cisjordânia. E outra em Gaza, comandada pelos fundamentalistas e rejeicionistas – o nome que se dá aos que pregam a destruição do estado judeu. Para complicar, Israel ainda tem a sua própria população árabe, com cidadania, mas nenhuma empatia com o país que habita. Todos os líderes de Israel, de qualquer filiação política, vivem sob o choque das forças tectônicas decorrentes daí: o compromisso de usar todos os recursos, necessários ou excessivos, para defender a nação judaica e a compreensão, até quando não querem, de que Israel não pode dominar indefinidamente uma população tão hostil que mães aplaudem quando seus filhos, ou filhas, se transformam em bombas humanas. Yitzhak Rabin, o general "quebra-ossos", aceitou o retorno à Cisjordânia de Arafat e seus seguidores (foi assassinado por um judeu que o considerou traidor). Ariel Sharon, o mais duro entre os duros, tirou as tropas israelenses de ocupação e desmontou assentamentos judeus em Gaza (também foi chamado de traidor; vive em estado vegetativo desde o derrame que sofreu em 2006).

Todas as vezes que Israel faz o que considera supremas concessões aos palestinos, mas continua a sofrer violência, reverte ao papel de vítima – e revida com força infinitamente maior, num ciclo que parece não acabar nunca. Nos últimos anos, a convivência incômoda com os líderes da Cisjordânia não produziu nenhum acordo de paz, mas estabilizou a situação. A ajuda americana e o comércio relativamente livre melhoraram a situação econômica da população palestina nesse território. Mas a ideia de mostrar que os "bons" (na Cisjordânia) prosperariam e os "maus" (em Gaza) seriam castigados não tem dado certo. Movimentos extremistas como o Hamas funcionam melhor justamente num ambiente de desgraças. Nos últimos seis meses, houve um cessar-fogo entre as partes, mediado pelo Egito. Israel manteve o bloqueio a Gaza, que certamente aumenta sua segurança ao impedir atentados terroristas, mas inferniza a vida das pessoas comuns. Há quinze dias, o Hamas voltou a disparar foguetes contra as localidades israelenses. O raio de alcance aumentou e atinge cidades como Ahskelon, antes preservadas. "Nossa vida mudou muito neste ano. Quando toca a sirene, as pessoas têm quinze segundos para se esconder", conta Roberta Krauss, brasileira de 22 anos que mora lá. Desde março, por instrução do Exército, os jovens de Ashkelon não ouvem mais seus iPods nem nenhum outro aparelho com fones de ouvido – precisam ficar atentos aos alarmes. Na segunda-feira 29, Roberta viu com os próprios olhos o que pode acontecer: um foguete do Hamas caiu na rua onde mora; uma pessoa morreu e oito sofreram ferimentos. "Quando a poeira baixou, vimos os corpos no chão."

Fotos Majed Hamdan/AP e Tsafrir Abayov/AP

DOS DOIS LADOS
Prisioneiro palestino escapa de escombros de cadeia bombardeada e israelenses se protegem de foguete vindo de Gaza. "Quando a poeira baixou, vimos corpos no chão", conta a brasileira

Não é justo comparar o sofrimento de jovens privados de iPods, ou o baixo número de vítimas, com o que acontece em Gaza: atingir civis por qualquer tipo de ataque exige a mesma e unânime condenação. É legítimo, portanto, contestar como Israel usa sua incomparável superioridade militar. "A situação é horrível, horrível", descreveu outro brasileiro residente na região, do lado de Gaza, José Raed Aziz. "De repente, começam as explosões. Quando dá para sair de casa, percebemos que alguns prédios desapareceram. Botei uma bandeira do Brasil no telhado de casa para ver se os israelenses não nos bombardeiam." Os ataques aéreos foram seguidos de uma concentração de tanques na fronteira, o que faz antever, se não a reocupação de Gaza por Israel, pelo menos incursões em larga escala por terra. O próprio ministro da Defesa, Ehud Barak, comandante das operações, usou os termos mais extremos: "Estamos em guerra total contra o Hamas". Ele sabe muito bem que, depois da "guerra total" contra o Hezbollah, o grupo extremista libanês, com seus resultados ambíguos, nenhum líder israelense pode repetir a mesma ameaça e não cumpri-la. Barak faria tudo exatamente da mesma maneira se fosse se aposentar na semana que vem, mas não vai. Ele já foi primeiro-ministro e quer voltar a sê-lo – o sucesso ou o fracasso, do ponto de vista israelense, dos ataques a Gaza está assim inevitavelmente atrelado a sua, por enquanto, fraca campanha política. Outra candidata, integrante do atual governo como ministra das Relações Exteriores, é Tzipi Livni, que da ótica eleitoral também precisa mostrar serviço como linha duríssima no trato com os que atacam Israel.

Todo mundo com um mínimo de juízo concorda sobre o que é preciso fazer para que haja um acordo de paz: criar um estado palestino, garantir a segurança de Israel, devolver a metade árabe de Jerusalém e estender a distensão aos vizinhos ainda conflagrados. O problema, evidentemente, é como chegar lá. Muitos tentaram, nenhum conseguiu. A partir do dia 20, o presidente Barack Obama terá a sua chance. Os israelenses ficaram ressabiados de início, mas já fizeram suas contas: a imprensa enumera com satisfação os "amigos de Israel" no próximo governo, incluindo Hillary Clinton, a nova secretária de Estado, e Rahm Emanuel, o mais íntimo operador político de Obama, filho de um médico israelense. Quem deseja que a justiça e a paz prevaleçam torce para que todos se mostrem amigos de verdade e apresentem uma maneira nova de resolver um problema antigo. A qual terá de romper a lógica tribal de um olho por dez. Ou cem. Ou mil.

Mahmud Hams/AFP

"ESTAMOS EM GUERRA TOTAL"
Assim diz o ministro da Defesa de Israel; acima, mortos nos bombardeios

Negociar? Com quem?

Matem Moussa/AP

INCENDIÁRIO
Ismail Haniyeh: o líder do Hamas


Com o apoio de um em cada três palestinos, o Hamas se candidata naturalmente a ser parte de qualquer acordo de paz com Israel. A história e a natureza desse grupo são obstáculos tremendos a que isso venha a acontecer. Desde que foi criado, em 1987, o Hamas tem assumido as posições mais extremadas, similares às defendidas no início pela antiga Organização para a Libertação da Palestina de Yasser Arafat – com a diferença de que a ideologia fundada no extremismo religioso é mais impermeável às adaptações ao mundo real. São poucas as esperanças de que o Hamas seja hoje o que a OLP foi no passado. "Eles se recusam a negociar. Para isso, seria preciso que renunciassem ao terrorismo e reconhecessem o direito de Israel a existir, o que é totalmente improvável", disse a VEJA o canadense Mark Heller, pesquisador do Instituto de Estudos da Segurança Nacional da Universidade Tel-Aviv.

O Hamas descende das mesmas fontes que influenciaram a Al Qaeda de Osama bin Laden. A base ideológica provém da Irmandade Muçulmana, grupo fundamentalista egípcio que surgiu no começo do século passado e hoje está na origem de todas as correntes radicais existentes entre os sunitas, a vertente majoritária do Islã. Seu objetivo declarado é a destruição de Israel e a criação de um estado islâmico em que todo palestino tenha o dever religioso de ingressar na guerra santa. Atentados suicidas, quando conseguiam se infiltrar em Israel, e agora foguetes são as armas dessa guerra assimétrica, mas brutal. Apesar da retórica intransigente, o Hamas concordou com uma trégua que vigorou por seis meses ao longo de 2008, mediada pelo Egito. Em dezembro, quando o cessar-fogo expirou, Israel facilitou a entrada de alimentos, combustíveis e remédios na Faixa de Gaza para tentar estender a trégua. O Hamas preferiu retomar as hostilidades abertas e aumentou o número de foguetes disparados contra localidades do sul de Israel.

O mais perto que o Hamas chegou de uma solução conciliadora foi após as eleições legislativas de 2006 nos territórios palestinos, vencidas com 44% dos votos. No ano seguinte, o grupo montou um governo de coalizão com o partido laico Fatah. O cargo de primeiro-ministro da Autoridade Palestina passou a ser ocupado por Ismail Haniyeh, o incendiário líder aparente do Hamas, enquanto a Presidência ficou com Mahmoud Abbas, do Fatah. A experiência acabou três meses depois de nascer, quando soldados do Hamas desfecharam um golpe interno e executaram a sangue-frio mais de 100 membros do Fatah. Prédios públicos e delegacias foram incendiados ou implodidos em questão de horas. Se só se faz a paz com inimigos, como reza o mantra dos negociadores acostumados a problemas complicados, haja inimigo que se compare ao Hamas.

Duda Teixeira

Com reportagem de Gabriela Carelli e Leandro Narloch

Arquivo do blog