A didática e tradicional Hoje na história do Jornal do Brasil de terça-feira, dia 6, fustiga a memória do repórter com a lembrança de mais um aniversário da vitória esmagadora do presidencialismo no antecipado plebiscito de 6 de janeiro de 1963, que devolveu ao presidente João Goulart o mandato que caiu em suas mãos, como um presente dos deuses, com a renúncia do destrambelhado Jânio Quadros.
Ora, para quem acompanhou todo o episódio desde as suas origens, a derrota do parlamentarismo, articulada às pressas, para evitar o risco iminente de um confronto que racharia as Forças Armadas, é mais um elo na sucessão de erros primários, alguns com as marcas indeléveis da traição e que levou em linha direta aos 20 anos, 11 meses e 15 dias da ditadura militar que deixou poucas e renitentes saudades.
O fio da meada começa a ser desenrolado com a eleição a vice da chapa do marechal Teixeira Lott, de Jango Goulart, quando a Constituição permitia o voto em separado.
Mas, é claro que não se arma uma tão extravagante combinação, como casamento com os casais de noivos trocados no altar, sem uma articulação tecida com os fios da traição. No caso, em dose dupla. O movimento do Jan-Jan Jânio e Jango foi montado às escancaras pelo deputado paulista Castilho Cabral, ex-ademarista que se transferiu com armas e bagagem para onde piscava a luz do sucesso com o fenômeno do maníaco da renúncia.
A casa do deputado Castilho Cabral transformou-se em escritório do movimento da dupla traição do Jan-Jan, distribuindo farto material de propaganda às equipes recrutadas para o serviço.
Ora, Jango Goulart foi o nome indicado pelo então po- deroso PTB de Getúlio Vargas para vice do candidato do governo, Marechal Teixeira Lott. E Jânio Quadros, depois de três ameaças de renúncia à candidatura, foi consagrado em entusiástica convenção da UDN, realizada no Palácio Tiradentes, onde funcionava a Câmara dos Deputados, como o candidato da oposição udenista, derrotando o presidente do partido, senador Juracy Magalhães.
Nos alinhavos para indicar o candidato à vice, os muitos capítulos da comédia de pastelão. O candidato da UDN, o ex-governador de Sergipe Leandro Maciel foi recusado por Jânio, depois de duas renúncias. A UDN apelou para o senador Milton Campos, ex-governador de Minas e das melhores figuras que conheci na vida, de impecável postura ética e extrema modéstia.
Cobri quase toda a campanha de Jânio como repórter do Estadão. E testemunhei a costura da traição e o contraste abismal entre a duplicidade do candidato a presidente e a retidão de Milton Campos.
Depois de um giro de uma semana, o próximo roteiro começava pelo Rio Grande do Sul. Assisti a breve conversa entre os candidatos. Milton Campos tomou a iniciativa de comunicar a Jânio que não o acompanharia no giro gaúcho. E deu as suas razões: a sua candidatura não tinha a menor importância. Fundamental era a eleição de Jânio, que deveria aproveitar a oportunidade para articular o apoio de Jango e do deputado Fernando Ferrari, candidato avulso.
As urnas deram a consagradora vitória de Jânio, com Jango como vice, derrotando Milton Campos.
A renúncia de Jânio com sete meses de mandato, numa cada vez mais clara tentativa de manobra para voltar nos braços do povo, com amplos poderes, foi uma traição longamente preparada.
E, por pouco, a previsível resistência militar, com o racha no Rio Grande do Sul, liderado pela rebeldia do governador Leonel Brizola, não termina no primeiro confronto entre as Forças Armadas.
A posse de Jango é a saída penosamente articulada pelas lideranças parlamentares, com o parlamentarismo híbrido que protegia o presidente com o escudo do primeiro-ministro. Jango não sossegou enquanto não antecipou o plebiscito para derrubar o parlamentarismo e disputar com o cunhado Brizola a liderança das reformas de base.
E que analisada meio século depois, só confirma a evidência de que a jogada bisonha funcionou como a senha para os quase 21 anos da ditadura militar.