Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 06, 2009

A milhagem do presidente

Quando era oposição, o PT não perdia oportunidade de criticar o "deslumbramento" do então presidente Fernando Henrique com as galas que lhe proporcionava, nas suas viagens ao exterior, a sua condição de chefe de Estado e com a envaidecedora companhia dos poderosos da Terra. Isso, diziam os petistas simploriamente, era o que explicava o fato de a sua agenda internacional ser mais carregada do que a de qualquer de seus antecessores. "Ele viajou ao exterior, em 7 anos de mandato, 355 dias", exclamava Lula em 2002, como quem denuncia um grave desvio de conduta ou um delito de lesa-pátria.

Famosas últimas palavras, é o caso de observar. Reportagem publicada domingo no Estado mostra que só nesses 2 anos completos do seu segundo período no Planalto Lula passou bons quatro meses e meio no estrangeiro. Foi como se ele tivesse levantado voo no Airbus presidencial de US$ 56,7 milhões em um 1º de janeiro e só voltasse a pousar na Base Área de Brasília em um 17 de maio. Lula definitivamente tomou gosto pela coisa. No seu primeiro biênio, ele fez 39 viagens a 35 países, passando 82 dias fora. Já entre 2007 e 2008, foram 39 deslocamentos a 46 países, que consumiram 138 dias.

Na era da chamada diplomacia pessoal ? em que, de resto, o ir-e-vir dos governantes faz parte da promoção da imagem de cada qual para a opinião pública dos respectivos países ? o problema, naturalmente, é menos o da frequência das viagens, em si mesma, do que o da sua razão de ser. Para onde se vai e com qual finalidade é o que pesa. Em outras palavras, os roteiros de presidentes e primeiros-ministros representam hoje em dia, mais do que nunca, talvez, um indicador seguro da direção das políticas externas dos governos que comandam; ou melhor, da qualidade dessas políticas, tendo em vista, como não poderia deixar de ser, em cada caso, o interesse nacional.

Nesse sentido, é eloquente a extensa relação de países visitados por Lula ? excluídos os da América Latina, da mesma forma como, em levantamento semelhante, caberia excluir as idas de um mandatário francês ou alemão, por exemplo, a nações da União Europeia: em toda parte, geografia é destino, literalmente. (De qualquer maneira, o saldo dos encontros do brasileiro com os colegas da vizinhança é outra história.) Excluam-se também, em consideração às afinidades históricas, as visitas de Lula às antigas colônias portuguesas na África. Mas, para dizer o mínimo, não está claro o que o Brasil ganhou com as visitas do seu presidente a países como o Gabão, Líbia, Namíbia, Vietnã, Burkina Fasso, Congo, Gana, Indonésia?

Se é verdade que Lula "se transformou, pessoalmente, em figura emblemática lá fora", na avaliação do coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (Gacint), Gilberto Dupas, não é menos verdade que esse patrimônio foi mal empregado. Recém-empossado da primeira vez, Lula se apresentou ao mundo como condutor de uma campanha contra a fome, como que tentando globalizar o afinal fracassado Fome Zero doméstico. Ele chegou a apresentar a trepidante sugestão de tributar o comércio internacional de armas e de passagens aéreas para criar um fundo que sustentasse o seu projeto. Por seu manifesto irrealismo, a ideia não foi levada a sério ? e Lula a arquivou discretamente.

Ele ainda não arquivou a retórica do Sul-Sul, como se convencionou designar a sua diplomacia terceiro-mundista, que o levou às paragens mais improváveis, onde decerto pode fazer um curso intensivo sobre a diversidade geopolítica e cultural do planeta, em proveito nenhum para os brasileiros. Como assinalamos no editorial Uma diplomacia de erros, publicado na edição de domingo, nenhum acordo importante foi assinado pelo Itamaraty nesse período. Nem para isso, pelo visto, a opulenta milhagem presidencial teve alguma serventia. Ela se revelou de uma futilidade a toda prova como recurso para o fortalecimento das posições brasileiras em relação a temas cruciais como a liberalização do comércio mundial.

O resgate da Rodada Doha ? se e quando ocorrer, dada a onda protecionista que vem aí ? independerá dos périplos lulistas. As visitas do presidente a Pequim e Nova Délhi não aproximaram a China e a Índia do campo brasileiro nessa matéria. E nem teriam por quê.

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