"O problema real não é o estado brasileiro ser
forte ou fraco; o problema é que ele não existe"
Está de novo no ar a discussão em torno da necessidade de estabelecer um "estado forte" no Brasil. O estímulo para o debate, desta vez, é a crise econômica, que turbinou os amigos do "estado forte" pelo mundo afora – eis aí, argumentam eles, a prova de que os governos têm de mandar muito mais do que mandam, para não deixar que problemas tão sérios assim continuem ocorrendo. Os mais esperançosos chegam a imaginar, até, que existe em toda essa história uma demonstração de que o capitalismo, afinal, ainda pode ser derrotado em algum momento do século XXI, após 200 anos de tentativas malsucedidas para acabar com ele. Os menos ambiciosos se contentam com uma situação em que a liberdade econômica é tolerada, mas na qual sempre caberá ao governo dar a palavra final (e a inicial, também) em tudo o que julgar de alguma importância.
Não é por falta de torcedores que o Brasil não desfruta, neste momento, os benefícios do "estado forte". No governo, por exemplo, todo mundo é a favor – e mesmo quem não pensa muito no assunto diz que é, se por acaso alguém perguntar. Os dois nomes mais citados para a eleição presidencial de 2010, a ministra Dilma Rousseff e seu principal adversário, o governador de São Paulo, José Serra, são tidos como grandes amigos do "estado forte". Na verdade, o difícil hoje em dia é achar quem pense diferente – na política em geral, nos meios universitários, nas associações de empresários, nos órgãos de comunicação, nos sindicatos e por aí afora. (Muita gente, é claro, não está nessa discussão a passeio. As empreiteiras de obras públicas, por exemplo, estão sempre entre as mais entusiasmadas admiradoras do "estado forte" neste país.)
A dificuldade de tirar algum proveito efetivo dos discursos sobre o assunto está no seu ponto de partida. O problema real não é o estado brasileiro ser forte ou fraco; o problema é que ele não existe. Não existe em grande parte do território nacional, nem nas realidades práticas da vida diária de milhões de cidadãos brasileiros. Para que ficar pregando as virtudes de um poder público mais forte se ele não é capaz, hoje, de exercer um mínimo de autoridade em questões em que tem obrigação de estar presente? Todo mundo, numa conversa a sério, sabe perfeitamente bem que não se chega a lugar nenhum sem haver, no início de tudo, o entendimento de que as leis e as regras só valem alguma coisa se a maioria dos cidadãos acreditar que elas serão realmente aplicadas – o tempo todo, da mesma forma e para todas as pessoas. É aí que começa, no Brasil, a complicação com o "estado forte". Que motivo alguém teria, por exemplo, para acreditar em certidões produzidas por cartórios de registro de imóveis no interior do Pará? Órgãos do próprio governo, aliás, são os primeiros a não acreditar nelas. Não se acredita, no fundo, na maior parte da documentação fundiária da Amazônia como um todo – e a Amazônia cobre 60% do território brasileiro. O governo manda tanto, nessa questão, quanto manda nos anéis de Saturno.
A inexistência do estado, ali, vai muito além de problemas imobiliários. Uma reportagem recente da Folha de S.Paulo informou que um minério radioativo de exploração ilegal, a torianita, é extraído e contrabandeado livremente no Amapá há quase um ano; a Polícia Federal sabe disso, mas não pode fazer apreensões porque não tem onde guardar o material que for apreendido. A PF quer que a Comissão Nacional de Energia Nuclear cuide dessa torianita; a comissão não quer cuidar – nem ela nem a Polícia Militar Ambiental do Amapá. A PF entrou com uma ação contra a CNEN na Justiça, para obrigá-la a retirar do local o minério que já tinha capturado antes de suspender suas operações. Ganhou, mas o problema está longe de ser resolvido. A CNEN não quer fazer novas retiradas de material, por achar que isso não é obrigação sua, e a PF entrou com uma segunda ação judicial contra ela, ora em andamento. O contrabando continua.
O estado brasileiro não tem força para dar escrituras a milhões de moradores de favelas; o direito de propriedade, para eles, tem de ser assegurado a bala. Não consegue ampliar as pistas do aeroporto de Porto Alegre, por ser incapaz de remover a favela que deixou criar nas suas cabeceiras, nem fazer com que trens de carga andem a mais de 2 quilômetros por hora em áreas que foram invadidas junto aos trilhos, quando o estado era dono dos trens, dos trilhos e das áreas. Não controla nem as obras do PAC, bombardeadas por liminares, ONGs e guerras entre os seus próprios funcionários. Estado forte?
No Brasil de hoje, opção inválida.
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