VALOR ECONÔMICO
O desdobramento da crise financeira global com epicentro nos Estados Unidos vem ganhando abrangência e contornos cada vez mais preocupantes e ameaçadores. As últimas informações sobre queda, sem precedentes, na demanda agregada estão deslocando o diagnóstico de recessão profunda e prolongada para uma possível depressão econômica. A atual crise não pode ser vista como fase de contração de um ciclo econômico e que deverá automaticamente ser seguido da fase de recuperação. A sua natureza não foi ainda desvendada, mas seu poder destrutivo é tal que deverá trazer rupturas nas práticas econômicas e financeiras que podemos falar em fim de um regime econômico que vem regendo a economia global desde os anos 80. Muitos bancos e empresas símbolos já quebraram ou estão sendo socorridos pelo governo, como Citibank, GM e Ford, com medidas que estavam no index do pensamento convencional. A visão de mundo e idéias que fundamentavam o pensamento econômico convencional como mercado eficiente e, que se auto-regulam, ruíram com a crise. Políticas convencionais como a monetária deixam de funcionar e conceitos, como autonomia do Banco Central, perdem sentido diante da gravidade da crise e da urgência de ação coletiva.
Krugman vem falando em "Depression Economics". Ele reescreveu, à luz da atual crise, o seu livro de 1999 que se baseava na crise asiática, tendo como pano de fundo a crise japonesa. A revista The Economist já encontrou uma definição do que seria uma depressão econômica, uma contração no PIB de mais de dez pontos percentuais e que se prolongue por quatro anos. Para o meu gosto preferiria uma definição de depressão econômica que tomasse emprestado o significado da psicologia: uma doença em que a economia não reage normalmente aos estímulos convencionais, com a destruição da lógica do crescimento e da geração de novos empregos. É uma doença causada por desequilíbrios mais profundos. Neste estado, a política monetária convencional deixa de funcionar e são necessárias políticas fiscais extremamente agressivas, que tem efeitos colaterais indesejados, para evitar o pior e que, por si só, não são capazes de trazer de volta a saúde econômica e retorno do crescimento.
Neste caso para que os Estados Unidos e o resto do mundo comecem a reduzir o desemprego e voltem a crescer, serão necessários grandes ajustes para restabelecer os equilíbrios, desenvolver nova regulação do sistema financeiro e construir uma nova estrutura dinâmica para economia global para recompor a lógica do crescimento capitalista. Isto poderá levar anos.
O ponto central é que a atual crise financeira originou-se na crise do financiamento imobiliário "sub-prime" nos Estados Unidos, mas provocou uma contração global no crédito, desalavancagem generalizada e uma gigantesca deflação nos preços dos ativos, num processo global que se auto-alimenta de diversas formas. Esta deflação nos preços dos ativos é que está provocando uma queda, sem precedentes, no consumo e tem efeito destruidor no balanço das empresas. É este processo no qual as familias têm que deixar de consumir para pagar as dívidas, isto é, têm que aumentar a poupança e as empresas devem reduzir o seu passivo em função da deflação de seus ativos para recompor o seu patrimônio liquido, muitas vezes negativo, que rompe a lógica do crescimento. A prioridade passa a ser pagar a dívida acumulada na fase de bonança de crédito. Assim, a crise financeira destrói a lógica capitalista de crescimento na qual as empresas investem incessantemente em busca de lucro, atendendo a demanda de consumo das famílias.
Na medida em que a lógica financeira que prevalece passa pela prioridade absoluta das familias e das empresas, pela redução da dívida, isto é, ampliação da poupança das familias e utilização dos lucros pelas empresas para redução do seu passivo ou constituição de reservas, podemos entrar num quadro depressivo com insuficiência crônica de demanda. Com a deflação muitas e muitas empresas passam a ter patrimônio negativo e redução de dívidas passa a ser uma questão de sobrevivência.
Assim, a depressão econômica não é causada pela contração no crédito. Esta é a primeira fase da crise financeira que causa uma recessão. Mesmo que este problema tenha sido resolvido com devida recapitalização dos bancos e retirada do mercado dos ativos tóxicos, com retorno da liquidez e do crédito, dependendo dos excessos de endividamento e da magnitude da deflação do valor dos ativos financeiros, numa economia em depressão é a demanda por crédito que cai. Famílias e empresas poupam, mas do outro lado não há mais pessoas nem empresas dispostas a consumir ou investir endividando-se.
Neste quadro é que Keynes propunha a necessidade da política fiscal com ampliação de gastos do governo exatamente para captar o excesso de poupança e canalizá-lo para reconstituição da demanda agregada para sustentar a produção e o emprego.
Por trás de todo este processo existe um desequilíbrio estrutural e global. Como na fase de "boom" de crédito, as famílias americanas deixaram de poupar e consumir endividando-se até bater no limite - agora começam a aumentar a poupança para pagar as dívidas. Isto é, os americanos consumiram muito mais do que a sua produção permitia, gerando enorme déficit em transações correntes, recorrendo à poupança externa (superávit da China etc) e, desta forma, transmitia demanda e dinamismo aos demais países. Agora, com as famílias reduzindo, numa escala sem precedentes, a demanda por crédito e consumo e, em decorrência, as empresas reduzindo seus investimentos, resta para os EUA duas saídas. A ampliação dos gastos do governo ou aumento das exportações líquidas.
De 2001 a 2003, os Estados Unidos já ampliaram seu déficit fiscal provavelmente em mais de US$ 700 bilhões e, este ano, deverá ampliar em pelo menos outro tanto, mas logo baterá num limite. Como financiar um déficit desta magnitude ampliando o nível de endividamento? Assim, inevitavelmente os Estados Unidos deverão recorrer à ampliação das exportações líquidas, isto é, deverão transferir desemprego para os demais países. Para isto, inevitavelmente, o dólar deverá ser depreciado fazendo com que o resto do mundo pague as contas.
Entrevista:O Estado inteligente
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