O filme Foi Apenas um Sonho e a série Mad Men
reveem as frustrações da primeira geração de
americanos que enriqueceu em massa e foi morar
no subúrbio. A série vence por nocaute
Isabela Boscov
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Um urbanista diria que aqueles aprazíveis subúrbios americanos são uma anomalia: agremiações de famílias de profissão, renda e origem iguais, sem a variedade nem a fricção das cidades "naturais". Já a ficção americana enxerga neles algo mais – o lugar em que os casamentos são estéreis ou rancorosos, em que tudo o que não é igual é tolhido, em que a vida se desdobra sem propósito, a mediocridade reina e o consumo é deus. O fenômeno dos subúrbios (cujo equivalente, no Brasil, são os condomínios fechados) já conta mais de meio século, mas essa sua imagem continua palpitante na ficção. É ela que está no centro de Foi Apenas um Sonho (Revolutionary Road, Estados Unidos, 2008), que estreia nesta sexta-feira no país e é a adaptação de um romance de Richard Yates que, publicado em 1961, constitui uma espécie de marco zero da dramaturgia do subúrbio. E é parte essencial também da série Mad Men, cuja segunda temporada começa a ser exibida no dia 7 pelo canal HBO. Se o ponto de partida é semelhante, porém, o saldo final desses dois trabalhos não poderia ser mais contrastante. (Para ir adiantando: Mad Men ganha por nocaute.)
Estrelado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, Foi Apenas um Sonho trata de Frank e April Wheeler, que se conhecem na boêmia da Nova York dos anos 50, apaixonam-se e então se casam, porque ela engravidou, e vão morar no subúrbio. April tentou ser atriz, mas falhou. Cuida então da casa e das crianças. Frank, que nunca chegou a descobrir qual seria sua suposta vocação criativa, trabalha sem entusiasmo em uma empresa de equipamentos para escritório. Quando estão juntos, eles espezinham um ao outro, às vezes com violência – ou, quando estão de bem, reafirmam mutuamente quanto são superiores a essa vidinha. A questão é que April de fato detesta sua rotina (e talvez nem mesmo ame o marido), enquanto Frank posa de inconformista apenas para se manter interessante aos olhos da mulher. Esse equilíbrio tênue, então, desanda: April decide que eles devem se mudar para Paris, onde ela vai sustentar a família e ele vai "se descobrir".
Essa é uma das boas cenas de DiCaprio. Frank concorda com a proposta para provar que é um espírito livre, mas no fundo do seu olhar há pânico. Ele suspeita que não tem nada dentro de si a descobrir e, ademais, gosta da sua vida – dos filhos, da casa confortável, dos vizinhos, da mulher bonita e meio exótica para aquele cenário. Começa a gostar até do emprego, quando, por criancice – já que vai se demitir –, propõe uma ideia atrevida, mas que cai no gosto da diretoria. Esse é, também, um dos bons momentos do filme, porque é um dos poucos em que o subtexto de Richard Yates sobrevive à adaptação do diretor Sam Mendes, de Beleza Americana (e marido de Kate Winslet). Yates de fato pinta esse estilo de vida como de uma esterilidade irremediável. Só que sugere, nas nuances, que Frank e April culpam essa vida pela mediocridade que é deles, e que eles levaram consigo para o subúrbio – uma distinção sutil que se perde na adaptação de Mendes, com seu pessimismo vendido a granel, sem muita atenção para as forças que estavam se insinuando na sociedade americana. Tudo soa falso. Não por acaso, o filme conseguiu uma única indicação relevante ao Oscar: a de coadjuvante para o grande Michael Shannon, que interpreta com brutalidade virtuosística um homem que, em tratamento para um desequilíbrio mental, diz as coisas que os outros tentam reprimir.
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PERFEIÇÃO INATINGÍVEL |
As motivações que Foi Apenas um Sonho atropela são dramatizadas com uma inteligência e uma humanidade não raro devastadoras em Mad Men. A série gira em torno dos executivos de uma agência de publicidade da Madison Avenue no momento em que essa categoria se tornava sinônimo de arrojo – a mesma virada dos anos 50 para os 60 retratada no filme. Gira, portanto, em torno das pessoas que estavam manufaturando e vendendo o sonho de felicidade que se tornara a grande força motriz dos Estados Unidos do pós-guerra. Don Draper (o excepcional Jon Hamm) é o diretor de criação de uma dessas agências e dono de uma vida invejável: é casado com a perfeita Betty (January Jones, tão bonita que se demora a perceber ser também uma atriz de minúcias soberbas) e tem dois filhos lindos, uma casa com empregada no subúrbio, quantas amantes quiser em Manhattan e muito dinheiro. Don e Betty, porém, são infelizes, tanto em seu íntimo quanto na vida a dois. São infelizes como os seres humanos habitualmente o são. E mais ainda porque, como a primeira geração que enriqueceu em massa e foi persuadida de que a felicidade é um direito – quase uma obrigação – que se deve reclamar, se frustram e se acham diminuídos por não saber senti-la.
Para apreciar a contento a nova temporada de Mad Men, é preciso dar um jeito de assistir antes às reprises da primeira (que não foi lançada em DVD aqui). O que se ganha com o esforço é um exemplo da criatividade superlativa com que hoje a TV americana desbanca o cinema: quanto mais o espectador se deleita com a decoração e os figurinos belíssimos, os penteados impecáveis, o emocionante (sim, emocionante) jogo político do dia-a-dia no escritório e em casa, melhor ele percebe como esses personagens se deixaram aprisionar nessa ilusão de felicidade – e melhor pressente também por que eles não entendem que o sentimento os ilude a cada tentativa. Em Mad Men, caminha-se sobre um chão que só aparenta ser firme: sob ele, as placas tectônicas das grandes forças políticas, sociais e individuais da segunda metade do século XX já estão se chocando, e provocando mudanças psicológicas violentas que nenhuma dessas pessoas sabe ainda articular. Cabe a uma série de televisão, assim, ir ao centro emocional da era do subúrbio: Mad Men compreende que a insatisfação já era algo sentido, só não havia ainda um vocabulário para ela. Não que o programa precise de palavras. Tudo está dito nas imagens – e nas nuances.Trailer
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