VALOR ECONÔMICO
Há concordância de que existem sinais de que o ritmo de queda nas economias desenvolvidas está reduzindo. Alguns analistas já se apressam em afirmar que já estamos chegando ao "fundo do poço" e que no final deste ano aquelas economias vão iniciar a recuperação cíclica. Outros analistas mais críticos afirmam que não há nenhuma indicação de que o "pior já passou", ou de que recuperação virá, ou de que a recuperação se iniciará ainda neste ano. Em relação aos emergentes, não dá para fugir do fato de que a China e a Índia estão conseguindo manter o crescimento forte em 2009, ainda que num ritmo bem menor do que dos anos precedentes, e de que o demais vão sofrer contração nas suas economias em 2009. Da mesma forma, alguns analistas acreditam que já em 2010 estas economias voltarão a crescer, enquanto outros pintam um quadro mais difícil em que a recuperação não virá sem mudanças estruturais e reformas.
É natural que as opiniões dos economistas sejam conflitantes, pois existem divergentes visões de mundo e diferentes percepções sobre a natureza da crise e, consequentemente, da saída da crise. Existem também interesses divergentes e diferentes capacidades de fugir da ditadura das velhas ideias às quais se referia Keynes, ao revolucionar a macroeconomia na década de 30.
É fundamental entender o que está por trás das divergências para podermos interpretar corretamente as previsões sobre a recuperação da crise. Vamos entender estas divergências colocando foco numa questão central, que é se as medidas já tomadas e anunciadas serão suficientes para que as economias voltem a se recuperar em 2010, ainda que timidamente, e retomem em algum momento a trajetória de crescimento.
De uma forma bastante esquemática, para termos referência, podemos agrupar os economistas em dois grupos. De um lado, aqueles que acreditam, em maior ou menor grau, que a teoria econômica convencional, a teoria neoclássica, descreve corretamente as leis de funcionamento dos mercados. Como nos mercados interagem agentes racionais, os textos com a orientação da teoria neoclássica estabelecem como leis que os mercados tendem a se auto-equilibrar e se auto-ajustar, autorregulam-se e são eficientes, isto é, os preços determinados pelos mercados são corretos e refletem os fundamentos. Assim, desequilíbrios e crises seriam fenômenos transitórios causados fundamentalmente por fatores exógenos, ou seja, por interferência de elementos externos, principalmente as ações do governo ou outros choques, causados sempre por fatores exógenos.
De outro lado estão os economistas que rejeitam a teoria neoclássica em maior ou menor grau. Este grupo entende que, na realidade dos fatos, os mercados são instituições criadas e desenvolvidas pela sociedade humana, e nem sempre se comportam de forma racional, pois são antes seres morais, agem emocionalmente, cometem erros e têm interesses conflitantes. Assim, os mercados, como qualquer outra instituição humana, têm falhas. Eles nem sempre se equilibram ou se autorregulam, portanto a qualidade da regulação pelo governo é fundamental para o seu bom funcionamento, que também pode falhar. Os mercados podem gerar "bolhas" de preços descoladas dos fundamentos, particularmente no mercado financeiro, onde os preços dos ativos não têm referência clara dos fundamentos e dependem de fatores como liquidez e crédito.
Nestes mercados podemos ter comportamentos de manada, manias e pânicos. Assim, as crises são inerentes ao sistema de mercado e inevitáveis.
Se você for economista do primeiro grupo, esta crise financeira foi causada por um choque exógeno, houve erro na política monetária de Alan Greenspan [ex-presidente do Fed], de juros excessivamente baixos, e é um fenômeno cíclico e passageiro. Como os mercados tendem a se auto-equilibrar e se autorregular, a recuperação acontecerá em breve e não será necessária uma maior regulação, ou reformas estruturais no sistema financeiro, ao contrário. Para os menos fundamentalistas, a ação do governo foi necessária e já dá sinais de seus efeitos, assim a recuperação e volta à normalidade deverão ocorrer no final deste ano.
Se você for do segundo grupo, esta crise financeira é fenômeno endogenamente gerado pelo próprio funcionamento dos mercados. A desregulação e introdução de inovações financeiras permitiram o desenvolvimento de um sistema bancário paralelo que promoveu uma expansão excessiva de crédito e liquidez, bolhas especulativas e, por fim, a crise que causou o colapso do crédito, preferência pela liquidez, colapso nos preços dos ativos, grandes prejuízos e perdas patrimoniais. A crise num segmento pode contaminar outros, provocando prejuízos e criando diversos circuitos de realimentação e afetando todo o sistema financeiro. Portanto, a crise é sistêmica e estrutural. A gigantesca injeção de liquidez pelos bancos centrais foi necessária para evitar o colapso de todo o sistema bancário e paralisia do sistema econômico, mas não põe de pé o sistema financeiro, nem mesmo com taxa de juros zero e oferta infinita de crédito do banco central. O sistema financeiro precisa ser reconstruído com nova regulação para a economia real se recuperar. Como a política monetária torna-se ineficaz para reestimular a economia, só a política fiscal ativa pode evitar maior queda na demanda agregada. Entretanto, as políticas monetária e fiscal são insuficientes pois, sem a reconstrução do sistema financeiro, a verdadeira recuperação não ocorre.
Nesta última visão, não há sinais de recuperação nas economias desenvolvidas e a crise financeira pode ter novos desdobramentos, pois o próprio remédio, a injeção de liquidez massiva pelos bancos centrais, não é propriamente terapêutico - só evitou o pior, e pode causar novas bolhas e crises se o sistema financeiro não for reconstruído com novas regras rapidamente. A recuperação das economias emergentes depende da capacidade de antever as consequências da crise e fazer reformas e ajustes estruturais para se ajustar ao novo quadro pós-crise.
Certamente, um quadro global em que os fluxos de capitais serão menores, as exportações já sofreram forte queda e as importações alimentadas pelo consumismo e crédito dos americanos não serão fonte de crescimento dos emergentes via aumento das exportações. Será preciso tanto aumentar a poupança doméstica, como gerar dinamismo do mercado interno.
Entrevista:O Estado inteligente
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