O GLOBO
Os levantes populares sempre parecem surpreendentes para quem está de fora. Mas eles são construídos devagar. Embaixo da capa de uniformidade que os regimes autoritários conseguem construir, as mudanças acontecem sem que externamente se saiba. Os iranianos rebelados perguntam: "Onde está o meu voto?" E quem está de fora pode se perguntar: onde estava este Irã?
Ontem as ruas estavam menos agitadas, mas nos últimos dias todos viram o que o governo tentou evitar que fosse visto: o Irã de muitas mulheres com seus belos rostos expostos — a maioria em fotos de manifestações — e de pessoas de idades diferentes mostrando que o sentimento de revolta não é apenas de uma geração. O movimento mostra habilidade no uso da nova tecnologia de comunicação como ferramenta aliada.
Eles não se parecem um povo fechado, obcecado por armas nucleares, que nega o fato histórico do holocausto.
A população é jovem: 75% tem 30 anos ou menos.
Segundo o "The Nation", na véspera da eleição havia no país 75 mil blogueiros.
Os iranianos nas ruas não parecem gostar do isolamento e rompem a distância com o mundo através dos vídeos do YouTube, blogs, e principalmente do Twitter, o site de mensagens curtas, que virou o símbolo da rebelião.
O Irã já é um caso de estudo da mídia social e revoltas políticas.
Mas é também caso de um fenômeno mais clássico que acontece dentro das tiranias.
Imperceptivelmente as mudanças vão acontecendo, a corrente dos descontentes vai se adensando, até que um fato detona a explosão. A fratura exposta se dá dentro do regime dos aiatolás, já que o líder visível dos rebelados, Mir Hossein Mousavi, serviu à revolução islâmica na primeira fase e só foi candidato porque teve a aprovação do sistema. É por isso que sua mulher, Zahra Rahnavard, com véu colorido, mas rosto descoberto, uma intelectual respeitada e companhia constante do marido nos comícios, parece mais parte desse novo Irã do que o próprio Mousavi.
Tudo é complexo neste caso.
A fratura aconteceu dentro do sistema. O regime é autoritário, mas permitia eleições controladas. Em outras ditaduras, nem isso. Mahmoud Ahmadinejad tem seu eleitorado. As mulheres são tratadas como cidadãs de segunda classe, como em outros países da região, mas hoje só existem 4% de mulheres jovens (15 a 24 anos) analfabetas. Na Índia, democrática e candidata à potência, são 24%.
O Irã já enfrentou dores impostas pelo mundo ocidental.
O discurso recente de Obama admite que seu país sabotou uma breve experiência democrática em 1953. O xá Reza Pahlevi tinha, como se sabe, o apoio do Ocidente e era um ditador com polícia política feroz. Na guerra contra o Iraque, nos anos 80, os iranianos viram seu inimigo, Saddam Hussein, de braços dados com os EUA.
É preciso ponderar tudo isso para não construir uma opinião superficial como se aquilo fosse um jogo de futebol, com uma torcida chorando derrota. O regime dos aiatolá é indefensável. A ideia de um líder supremo religioso que a nenhum escrutínio popular se submete e ao qual todos se submetem é de um absolutismo intolerável.
Como em outras explosões, não é apenas a luta do bem contra o mal; é um processo que pode levar a endurecimentos ou reformas.
Nesta etapa, eles dizem a paus, pedras, passeatas, e também com o verde da cor que carregam, o que não querem.
Mas ainda não disseram que mudanças gostariam de ver. Os que poderiam dizer estão sendo presos. É hora de torcer e temer pelo Irã. É hora de admirar a coragem dos iranianos, que, como Neda Agha-Soltan, de 26 anos, a vítima cujo rosto sem vida estava nos jornais — entre no bloghttp://www.mirianleitao.com.br/ e veja seu rosto vivo —, lutam como podem.
Nos últimos anos, o Irã se modernizou em vários pontos.
Hoje, as mulheres são maioria nas universidades.
Quem faz um esforço assim, não há de aceitar eternamente barreiras aos seus projetos pessoais.
O país entrou em recessão com a crise, a taxa de desemprego cresceu. A inflação está em 20% e subindo, apesar dos subsídios e controles de preços. A crise econômica e a queda do preço do petróleo aumentaram a insatisfação dos iranianos, que enfrentam outras aflições como um nível crescente de poluição do ar — que faz o país suspender aulas — e um alto nível de contaminação da água.
Com os atrativos que tem do ponto de vista econômico, energético e cultural, um Irã mais aberto poderia tirar mais proveito de sua força. É isso que os rebelados parecem querer dizer nas suas mensagens curtas de aviso das barbáries dos últimos dias.
Num jantar no Canadá, no fim de 2007, com jovens de várias nacionalidades, a que mais me impressionou pela ousadia e rebeldia foi uma jovem iraniana, Tália, que estudava arquitetura em Waterloo.
Era o oposto do estereótipo da mulher submissa.
Ela me disse que não sabia se ficaria no Canadá: — Depois que se sai de sua terra pode-se ir para qualquer lugar. Sei para onde não vou: para os Estados Unidos.
Não quero ser discriminada.
No mínimo, é preciso admitir que muita gente julgava os iranianos pelo governo do Irã. Agora, as várias faces do país apareceram.