Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 13, 2009

Livros Entremilênios, de Haroldo de Campos

DA VEJA

O concretista barroco

Detratores e admiradores de Haroldo de Campos costumam 
reduzir sua obra à poesia concreta. Mas uma coletânea póstuma
mostra que sua produção é bem mais rica e variada: vai de versos
engajados (e ingênuos) à mais extremada opulência verbal


Nelson Ascher

Fabiano Accorsi/Folha Imagem
ACLAMADO, ATACADO, POUCO LIDO
Haroldo de Campos ao lado de um busto do grego Homero, sua última aventura na tradução: a política, para o poeta paulista, era uma nota à margem da história da literatura


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• Trecho do livro

Um dos poetas brasileiros mais famosos da segunda metade do século XX, Haroldo de Campos (1929- 2003) mal começou a ser de fato lido. A amplitude e a variedade de sua crítica literária se combinaram com a quantidade e a qualidade de suas traduções para lhe eclipsar a produção original. Além disso, ele continua conhecido sobretudo como fundador, junto com seu irmão Augusto, Décio Pignatari e outros, do concretismo, movimento de vanguarda dos anos 50. Leitores ocasionais e, pior, não poucos profissionais reduzem-no apenas a isso: o criador de meia dúzia de epigramas visuais atribuídos não raro ao irmão (ou vice-versa). Nem falta quem chegue a sua poesia após estudar os antigos manifestos e, não achando ali realizadas as teses que esses defendiam, fique decepcionado ou perplexo. O poeta mesmo e seus companheiros ajudaram a turvar as águas, enfatizando quanto os distinguia da geração anterior, algo que, associado a décadas de querelas irrelevantes, produziu falsas oposições. Agora, contudo, são as afinidades que sobressaem, e, não obstante a provável discordância dos poetas em questão, tornou-se fácil constatar que, com Ferreira Gullar e José Paulo Paes, os concretistas formam a terceira geração do modernismo nacional.

A produção poética final de Haroldo acaba de ser reunida em Entremilênios (Perspectiva; 256 páginas; 55 reais). A organização, iniciada pelo autor, foi concluída por sua viúva, Carmen de P. Arruda Campos. Os poemas, ilustrando o estilo maduro do poeta, retomam e desenvolvem, de maneira segura, elementos e temas que remontam a seu volume de estreia,O Auto do Possesso, de 1949. A identificação total de Haroldo com a poesia concreta soa ainda mais inadequada caso se considere que essa almejava a máxima brevidade, colocando-se como meta o poe-ma de uma palavra, enquanto a vocação inata do autor de Entremilênios o dirigia à opulência verbal. Um dicionário lhe dava tanto prazer quanto a Divina Comédia, se bem que, perpetua-mente insatisfeito com os dicionários, o poeta não parasse de lhes acrescentar neologismos. Na verdade, são os seguidores do concretismo que, aplicando-a ingenuamente, convertem a teoria em receita e derivam dela juízos simplistas. A escrita complexa e rebuscada de Haroldo não serve de desculpa à arrogância iletrada dos que, hoje em dia, se dizem vanguardistas, pois, se a obra dele é difícil de ler, a dos discípulos é somente ilegível. Durante a fase vanguardista, Haroldo se obrigou a escrever contra sua própria natureza, exercício saudável e útil que lhe rendeu, até o fim, dividendos de autodisciplina. A proliferação verbal controlada, característica exclusiva do poeta que passou metade da carreira se declarando neobarroco, é amiúde condenada como preciosismo. Decerto recorrer a um vocabulário muito maior que o de uso corrente acarreta riscos, mas, quando se alcança o equilíbrio exato, tal estranhamento produz uma comicidade intencional.

A DISCIPLINA DA VANGUARDA
A partir da esquerda, Haroldo com Décio Pignatari e o irmão Augusto de Campos, nos tempos do concretismo: o movimento ajudou-o a controlar o verbo

O que chamará atenção neste volume póstumo é, sem dúvida, o que ele tem de menos notável: uma seção ("musa militante") dedicada à lira engajada. Gato escaldado desde os anos 60, quando a esquerda organizada e os populistas o denunciaram como formalista (um palavrão na época) e o isolaram, valendo-se da hegemonia que mantinham nos cadernos culturais, dá para entender que, nos anos 90, Haroldo, como a maioria dos escritores, cedesse ao patrulhamento e tentasse, aqui e ali, atacar os bichos-papões corriqueiros dos petistas e demais bem-pensantes – Bush, o neoliberalismo (tanto faz o que isso fosse), a Guerra do Iraque etc. – reservando a um genocida como Saddam Hussein o epíteto inócuo de "louquiloquente". O poeta nada tinha de George Orwell, e quem o conheceu sabe que a política não lhe ocupava o centro das atenções. Essa, aliás, como a história propriamente dita, resumia-se, para ele, a uma nota à margem da história literária. Independentemente de suas convicções, o que conta é que, nas cada vez mais totalitárias e homogêneas rodas intelectuais, qualquer desvio acarreta consequências imediatas, e até artistas apolíticos vivem sob suspeição.

Os pontos altos de Entremilênios estão em outras partes, por exemplo, no Réquiem, homenagem ao finado escritor argentino Néstor Perlongher na qual, sequioso de dizer tudo, de todas as formas e ao mesmo tempo, Haroldo, quando obrigado a escolher entre dois sinônimos, opta por três ou mais e, em vez de cair na redundância, consegue, por meio de uma espécie de refração, potencializar-lhes os sentidos. O âmago da coletânea é a seção "circum-stâncias", com textos que evocam e materializam as belezas vistas ou recordadas de Veneza, Milão, Roma e até, na sua antibeldade ostensiva, de São Paulo. Já a seção "lendo a Ilíada", composta paralelamente à sua derradeira empreitada tradutória (o épico grego Ilíada, de Homero), talvez seja a mais tipicamente haroldiana na medida em que demonstra como materiais, ideias, recursos e imagens transitavam entre seus poemas, traduções, ensaios.

Não é uma poesia fácil aquela que se encontra em Entremilênios. Para começar, insurgindo-se contra a tirania do coloquial, ela requer fluência em diversos níveis da língua e, no mínimo, um bom dicionário. Como a de seu principal mestre, o americano Ezra Pound, a poesia de Haroldo pressupõe certa familiaridade com um repertório literário e artístico. Sua sintaxe peculiar, elisões e inversões, transições abruptas, palavras montadas, desmontadas e remontadas, justaposições dissonantes e conclusões inesperadas não se entregam a leitores afobados, desatentos, preguiçosos. Se as dificuldades são muitas, entre as recompensas, também numerosas, está o prazer, crescente a cada releitura, de se embrenhar num universo que esbanja engenhosidade e desenvoltura verbal sem jamais prescindir da autoironia.

feiura (falam em)
para definir esta
cidade

fealdade
bruteza
de pedra
selvagem

(...)
mas eu
paulista paulistano
confesso que amo
essa fereza e digo:
beleza impura
(...)
tigresa encarcerada
ou leoparda ou
leonesa 
presa em jaula
esquálida
de armado esqueleto
fechado no armário
hermético
do concreto

trecho do poema São Paulo

• • •

beleza (confesso) que me
enruste
beleza antiproust
sem
memória do passado
sem olhar parado sem
anamnese ou madeleine
im-passiva
des-mêmore
im-plosiva
no tenso (que
cultiva) dilema u-
tópico no paradoxo
absurdo de uma
(porventura)
memória do futuro

trecho do poema São Paulo


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