Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 20, 2009

A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, de Junot Díaz

VEJA

A tragédia do imigrante nerd

Um belo romance sobre o jovem que
sonha ser o "Tolkien dominicano"


Miguel Sanches Neto

Mariela Lombard/Zuma Press

PRIMITIVO E POP
O dominicano-americano Junot Díaz: vodu, maldições familiares e videogames

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Exclusivo on-line
• Trecho do livro


O mundo dos nerds, fãs de histórias em quadrinhos, videogames e ficção científica, tem agora o seu grande romance: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao (tradução de Flávia Anderson; Record; 336 páginas; 45 reais), de Junot Díaz, 40 anos, dominicano que mora nos Estados Unidos desde a infância e hoje dá aulas de redação criativa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Narrada em um inglês cheio de gírias (que a tradução para o português consegue manter vivas) e expressões em espanhol, a obra – vencedora do Prêmio Pulitzer de 2008 – estabelece conexões com os temas e a linguagem do mundo do entretenimento sem se render à sua superficialidade. E é também um retrato vigoroso da imigração hispânica nos Estados Unidos.

O protagonista do livro é o jovem Oscar Wao, um professor de redação criativa que não tem obra publicada. Com a ambição de se tornar o "Tolkien dominicano", ele escreve industrialmente textos de fantasia, todos recusados pelos editores. Gordo e tímido, Oscar é um nerd à margem da sociedade moderna. É afligido por uma forte pulsão erótica, mas seus amores acabam não correspondidos, e isso faz com que sinta, de maneira mais agressiva do que os demais imigrantes ou descendentes de dominicanos, a solidão num país estranho.

Quem narra a vida breve de Oscar Wao é um de seus poucos amigos, Yunior, ex-namorado de sua irmã. Para esse narrador, Wao é produto de uma maldição que recaiu sobre a família, começando com seus avós, sacrificados pela ditadura de Rafael Trujillo, que dominou a República Dominicana de 1930 a 1961. O avô, médico rico, cai em desgraça quando se recusa a entregar uma de suas filhas ao ditador. A única filha que sobrevive à perseguição que se segue é torturada e tem de deixar o país. Seu filho é justamente Oscar, que será morto por se apaixonar por uma prostituta ligada a um policial – isso já fora do período da ditadura e longe da República Dominicana, pois todo terror, uma vez iniciado, se propaga sozinho, conforme as crenças voduístas que perpassam pelo livro. Morando nos Estados Unidos, os personagens de Junot Díaz mantêm vivas suas tradições e tragédias. Mesmo Wao, que busca escapar pela literatura pop, está aprisionado a suas raízes. Como estilo e temática, A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao promove a contaminação do mundo central pelo primitivismo mágico da periferia, tudo numa narrativa bem construída, engraçada e envolvente.

TRECHO DO LIVRO

1 

11 

11 

Nerd do gueto no 

fim do mundo 

1974-1987 

A IDADE DO OURO 

Nosso herói não era um daqueles caras dominicanos que vi- 

via na boca do povo — não se tratava de um rebatedor venera- 

do, nem de um bachatero badalado, tampouco de um playboy 

cheio de mulheres aos pés. 

Salvo um curto período no início da vida, o cara sempre se 

deu mal com as gatas (um lado seu nem um pouco dominicano). 

Ele tinha 7 anos, na época. 

Naqueles anos abençoados da infância, Oscar era, de certo 

modo, um casanova. Um daqueles moleques assanhados da es- 

cola, que tentava beijar as meninas a toda hora e sempre se 

aproximava delas por trás, nos merengues, movendo a pélvis; o 

primeiro nego a aprender o perrito e a dançá-lo na primeira 

oportunidade. Como naquele tempo (ainda) era um garoto 

dominicano "normal", criado numa família dominicana "tra- 

dicional", a tendência a cafetão que despontava foi estimulada 

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tanto pelos amigos quanto pela parentada. Durante as festinhas 

— e havia muitas delas nos idos anos 1970, muito antes de Wa- 

shington Heights ser Washington Heights, bairro do crime, 

muito antes de só se ouvir espanhol nos quase 100 quarteirões 

da Bergenline — algum parente embriagado sempre empurra- 

va Oscar na direção de uma garotinha e, então, os beberrões 

faziam a maior algazarra ao ver os dois imitarem quase com 

perfeição o rebolado dos adultos. 

Vocês precisavam ter visto, balbuciou sua mãe em seus últi- 

mos dias. Parecia uma versão miniatura do nosso Porfirio 

Rubirosa!4 

Todos os outros garotos da idade dele fugiam das garotas 

como se elas estivessem infectadas com a supergripe "Capitão 

Viajante". Mas não o Oscar. O danadinho, louco pelas me- 

ninas, tinha "namoradas" de sobra. (Era um moleque robus- 

to, com evidente tendência à obesidade, tratado com zelo pela 

mãe, que sempre o mantinha ajeitadinho, de roupa arrumada 

4 

Nos anos 1940 e 1950, Porfirio Rubirosa — ou Rubi, como era chamado na mídia 

— tornou-se o terceiro dominicano mais famoso no mundo (O primeiro era o 

Ladrão de Gado Frustrado, seguido de María Montez, a Mulher Cobra em pes- 

soa). Sujeito bonitão, alto e encantador, cujo "falo enorme causou sensação na 

Europa e na América do Norte", Rubirosa era o típico playboy do jet set, obceca- 

do por pólo e automobilismo, "o lado feliz" do Trujillato (já que se tratava, de 

fato, de uma das celebridades favoritas de Trujillo). Um ex-modelo de meio-expe- 

diente e bon-vivant, Rubirosa casou-se, de forma memorável, com a filha do dita- 

dor, Flor de Oro, em 1932, e, embora tenham se separado cinco anos depois, no 

Ano do Genocídio Haitiano, o cara continuou a desfrutar da boa vontade de El 

Jefe no decorrer do longo regime. Ao contrário do seu ex-cunhado Ramfis (com 

quem sempre era visto), Rubirosa parecia incapaz de cometer homicídios, mas, 

em 1935, foi a Nova York a mando de El Jefe com a missão de assassinar o líder 

exilado Angel Morales, mas fugiu sem cumprir a obrigação. Rubi foi o primeiro 

jogador dominicano; transou com todo o tipo de mulher: Barbara Hutton, Doris 

Duke (que, por um acaso, era a mulher mais rica do mundo), a atriz francesa 

Danielle Darrieux e Zsa Zsa Gabor, só para citar algumas. Como seu colega Ramfis, 

Rubirosa morreu em um desastre de automóvel, em 1965, quando a Ferrari de 12 

cilindradas derrapou e saiu da estrada, em Bois de Boulogne. (Impossível deixar 

de notar a importância dos carros nessa narrativa.) 

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e cabelo cortado. E, antes de a cabeça do garoto crescer de 

modo exagerado, os olhos eram chamativos e brilhantes; as 

bochechas lembravam bumbum de bebê, visíveis em todas as 

fotos.) As mulheres em geral — as colegas de sua irmã Lola, as 

amigas da mãe e até mesmo a vizinha de 30 e poucos anos, a 

funcionária do correio Mari Colón, com seu batom vermelho 

e requebrado escandaloso — admitiam sem pudor sua paixão 

por ele. Esse muchacho está bueno! (Que mal havia em ele ser 

ansioso e ter déficit de atenção? Nenhum!) Na RD, durante 

as visitas de férias à família em Baní, Oscar ficava ainda mais 

impossível; postava-se diante da casa de Nena Inca e mexia 

com as transeuntes: Tú eres guapa! Tú eres guapa!, até que 

um dia uma adventista se queixou com a avó dele, que deu 

fim à farra na mesma hora. Muchacho del diablo! Isto aqui 

não é cabaré não! 

Foi mesmo uma Idade de Ouro para Oscar, uma época 

que atingiu o apogeu no outono do seu sétimo ano na Terra, 

quando o menino tinha duas namoradas ao mesmo tempo, 

seu primeiro e único ménage à trois: Maritza Chacón e Olga 

Polanco. 

Maritza era amiga de Lola. Sempre bela, com os cabelos 

longos impecáveis, poderia ter feito o papel da Dejah Thoris 

criança. Já Olga não era amiga de ninguém da família. Morava 

numa casa no final do bairro, na área da qual a mãe de Oscar 

sempre se queixava por estar cheia de porto-riquenhos que sem- 

pre ficavam tomando cerveja na varanda. (¡Dios mío!, por que 

não fazem isso lá em Cuamo?, perguntava ela, aborrecida) Olga 

devia ter uns 90 primos e, pelo visto, todos se chamavam Hector 

ou Luis ou Wanda. Como sua mãe era una maldita borracha 

(palavras da mãe de Oscar), às vezes a moça fedia que dava dó, 

o que levou a garotada a apelidá-la de Srta. Peabody, uma alu- 

são ao cão inteligente de História improvável. 

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Srta. Peabody ou não, Oscar gostava do seu jeitinho tími- 

do, da forma como ela brincava de luta com ele no chão e o 

interesse que ela demonstrava em suas figuras de ação de Jor- 

nada nas estrelas. Já Maritza era a maior gata, no caso dela não 

havia necessidade de incentivo, ela sempre estava por perto. 

Oscar teve a brilhante idéia de dar em cima das duas ao mesmo 

tempo. No início, fingiu que quem queria ficar com elas era o 

Capitão Marvel, o herói mais incrível. Mas, depois que as duas 

concordaram, ele foi claro: o interessado era ele mesmo, não o 

Capitão. 

Como naquela época tudo era mais inocente, sua relação se 

limitava a uma maior aproximação no ponto de ônibus, mãos 

dadas às escondidas, às vezes, e dois beijinhos no rosto, com 

seriedade, primeiro em Maritza, depois em Olga, escondidos 

do tráfego atrás de um arbusto. (Olhem só o machito, diziam 

as amigas da mãe dele. Que hombre!) 

O trio só durou uma única e inesquecível semana. Um dia, 

Maritza encurralou Oscar atrás do balanço e decretou: ou ela 

ou eu! O garoto segurou a mão dela e conversou longamente 

com ela, deixando claro que a amava e a lembrando que tinham 

concordado em compartir; só que a garota nem deu bola. 

Maritza tinha três irmãs mais velhas, sabia tudo de que precisa- 

va sobre as possibilidades de compartilhar. Nem fala mais co- 

migo, só aparece quando se livrar dela! A menina da pele de 

tom chocolate e dos olhos miúdos já manifestava o poder de 

Ogum, que usaria pelo resto da vida para fazer picadinho de 

quem cruzasse em seu caminho. Cabisbaixo, Oscar voltou para 

casa e os desenhos animados anteriores à era-das-fábricas- 

escravizantes-coreanas — Os Herculóides e Space Ghost. O que 

é que houve com você?, perguntou a mãe. Ela se preparava para 

ir ao segundo emprego, o eczema das mãos lembrando restos 

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de comida velha grudada. Quando Oscar respondeu, queixo- 

so, Meninas, a Mãe de León quase teve um piripaque. Tú ta 

llorando por una muchacha? Agarrou as orelhas do menino até 

ele ficar de pé. 

Mami, para!, gritou a irmã, para! 

A mãe jogou o menino no chão. Dale un galletazo, disse ela, 

sem fôlego, aí vê se la putita não vai te respeitar! 

Fosse ele outro nego, talvez tivesse pensado no galletazo. 

Mas Oscar não contava com nenhuma figura paterna que o 

pusesse a par das artimanhas masculinas, não tinha a menor 

tendência agressiva nem marcial. (Ao contrário da irmã, que 

brigava com garotos e morenas de gangues que odiavam seu 

nariz fino e cabelo meio liso.) Daí, a nota de Oscar no quesito 

combate era zero; até mesmo Olga poderia encher o moleque 

de porrada com seus bracinhos mirrados. Agressão e intimi- 

dação estavam fora de cogitação. Então ele ponderou sobre o 

assunto e não precisou de muito tempo para tomar uma deci- 

são. Afinal de contas, Maritza era linda, Olga, não; a feinha às 

vezes cheirava a xixi, a bonitinha, não; Maritza podia ir até 

sua casa, Olga, não. (Uma porto-riquenha aqui?, perguntava 

a mãe, com sarcasmo. Jamás!) O raciocínio limitado do garo- 

to remetia à lógica rudimentar dos insetos. Oscar terminou 

com Olga no dia seguinte, no recreio, com Maritza do lado; e 

como a garota chorou! Tremeu feito vara verde com as rou- 

pas de segunda mão, os sapatos bem maiores que os pés, o nariz 

escorrendo e tudo o mais! 

Anos depois, quando Oscar e Olga viraram esquisitões obe- 

sos, ele não conseguia evitar a pontada de culpa que sentia às 

vezes, quando a via andando rápido do outro lado da rua ou 

contemplando o mundo com olhar vago, no ponto de ônibus 

de Nova York; não conseguia deixar de pensar no quanto a 

forma tremendamente fria com que terminara o namoro tinha 

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contribuído para o atual estado ferrado da moça. (No dia em 

que acabou com a relação, lembrou ele, não sentiu nada, nem 

se tocou quando ela chorou. Chegou a dizer: Para de chorar 

feito um bebê.) 

No entanto, o que doeu de verdade, foi o fora que ele levou 

de Maritza. Na segunda-feira, quando já tinha dispensado Olga, 

chegou ao ponto de ônibus com sua adorada lancheira do Pla- 

neta dos macacos e se deparou com a bela Maritza de mãos dadas 

com Nelson Pardo, o tapado. Nelson Pardo, que lembrava Cha- 

ka, de O elo perdido. Nelson Pardo, o cara tão idiota que acha- 

va que a lua era uma mancha que Deus tinha esquecido de 

limpar. (Ele se encarregaria disso logo; foi o que assegurou para 

toda a turma.) Nelson Pardo, que se tornaria o maior larápio 

do bairro antes de entrar na Marinha e perder oito dedos do pé 

na Primeira Guerra do Golfo. No início, Oscar achou que ti- 

nha visto mal; o sol batia nos seus olhos e ele não dormira bem 

à noite. Manteve-se ao lado dos dois e admirou sua lancheira; 

como o Dr. Zaius parecia autêntico e maligno! Mas Maritza não 

sorriu para ele; aliás, agiu como se nem existisse. A gente vai se 

casar, disse ela para Nelson, que sorriu feito um trouxa, viran- 

do o rosto na direção da rua para ver se o ônibus vinha. Oscar 

estava arrasado demais para falar. Sentou-se na beira da calça- 

da, sentindo uma dor devastadora no peito que o apavorou. Sem 

mais nem menos, caiu no berreiro. Quando Lola, sua irmã, ca- 

minhou até onde ele estava e perguntou o que estava aconte- 

cendo, o garoto balançou a cabeça. Olha só o mariconcito, 

comentou alguém, soltando um risinho abafado. Alguém tam- 

bém chutou sua adorada lancheira, arranhando o rosto do ge- 

neral Urko. Assim que Oscar entrou no ônibus, ainda chorando, 

o motorista, um notório ex-usuário de PCP, disse, PAra de cho- 

rar feito um bebê, porra! 

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