Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 20, 2009

Hammerstein ou a Obstinação, de H.M. Enzensberger

VEJA

O melhor cérebro da Europa

Hans Magnus Enzensberger, poeta e ensaísta alemão, é um exemplo raro de intelectual que examina os fatos antes de opinar


Nelson Ascher

Foto Alexandre Schneider

CÉTICO EM TRÂNSITO
Enzensberger: desilusão com o stalinismo cubano e surpresa com a exuberância da parada gay brasileira



VEJA TAMBÉM

Trecho dO LIVRO

Exclusivo on-line
• 

Hoje o maior poeta europeu e também o melhor ensaísta do continente, o alemão Hans Magnus Enzensberger esteve na semana passada em São Paulo para conferências no Instituto Goethe e para o lançamento de um livro,Hammerstein ou a Obstinação (tradução de Samuel Titan Jr.; Companhia das Letras; 344 páginas; 53 reais). Sentiu-se mal no sábado 13, e chegou a ser internado para exames na UTI do Hospital Sírio-Libanês, onde se constatou que ele sofrera um leve AVC. Recebeu alta no mesmo dia – e no domingo já andava pela Avenida Paulista, tirando fotos da Parada Gay. "Berlim também tem uma parada gay, mas ninguém supera o Brasil em exuberância", divertiu-se. A disposição para, aos 79 anos, saltar de um leito de hospital para um evento de rua é muito própria do estilo do poeta de O Naufrágio do Titanic. Ao contrário do que acontece com os escritores em geral que, quando debatem o mundo à sua volta, supõem que a "criatividade" substitui a observação e acabam por produzir toscas variações sobre fórmulas sintetizadas por outros, o autor se debruça sobre cada assunto com a dedicação do especialista. Já o que o distingue dos especialistas é tanto a variedade de questões às quais sua curiosidade o conduz, como o estilo claro, elegante e sempre livre de jargão com que escreve.

Enzensberger já era influente no começo dos anos 60, proclamado um sucessor teórico do filósofo Theodor Adorno e poético do dramaturgo Bertolt Brecht, ambos marxistas. Mesmo então, sua aplicação do marxismo a tópicos ainda mal explorados – meios de comunicação, ecologia, terrorismo, turismo, vanguarda – era mais refinada do que as demais. Malgrado o envelhecimento daquela terminologia, suas análises e conclusões continuam surpreendentemente atiladas. No entretempo, o poeta foi gradualmente revendo suas posições ideológicas, políticas e culturais até chegar à crítica dura da esquerda e seus dogmas. Não se tratava de ruptura súbita e ruidosa: era, antes, resultado da observação meticulosa, pois, se os intelectuais sedentários defendiam (ou atacavam) lugares, governos e sistemas que (graças a outros intelectuais) conheciam somente de segunda ou terceira mão, ele sempre fez questão de visitá-los pessoalmente. Chegou a viver em Cuba, no fim dos anos 60 – e a experiência do dia a dia na ilha de Fidel Castro foi decisiva para sua desilusão com o socialismo.

Sem que se confundam, há contiguidade entre sua prosa e poesia, uma vez que, mesmo num texto de caráter histórico ou biográfico, o autor utiliza procedimentos típicos da literatura (colagens, estranhamento, diálogos imaginários), e não raro discute logicamente questões concretas em seus versos. Um dos fios que costuram o conjunto, dando-lhe coerência, é sua abordagem. Enzensberger, na medida do possível, prefere que os fatos expostos e justapostos falem sozinhos. Sua opinião, raramente explicitada, antecede a escrita, transparecendo na seleção e na ordem dada ao material.

Divulgação

OPOSIÇÃO CONSERVADORA
Hitler e Hammerstein: o general recusava-se à obediência cega


Hammerstein 
é um exemplo acabado de como o ensaísta opera. O livro, uma biografia que, embora não romanceada, lança mão de recursos ficcionais, examina a vida e a carreira de um general alemão entre o começo do século XX e meados da II Guerra Mundial. Kurt von Hammerstein-Equord (1878-1943), membro da antiga aristocracia militar germânica, teve papel de relevo, durante o entreguerras, na República de Weimar, assistiu contrafeito à ascensão de Adolf Hitler e, sem chegar a combatê-lo abertamente, mostrou-se avesso o bastante ao novo regime para ser posto de lado. Seus filhos, personagens não menos importantes da narrativa, resistiram ativamente ao nazismo: as meninas, desafiando as convenções de seu tempo e classe, ingressaram no Partido Comunista Alemão e namoraram judeus, enquanto dois dos rapazes, arriscando o pescoço, participaram do movimento que tentou, sem sucesso, assassinar o ditador. O pai, que não impediu a prole de seguir seu caminho, inspirou-a por meio de uma excentricidade: a teimosia, ou seja, a recusa a seguir cegamente ideias alheias. Enzensberger se deleita ao descrever a oposição ao nazismo vinda não de onde normalmente se esperaria (a intelectualidade, o povo, o proletariado etc.), mas, sim, de um meio conservador quase defunto. O poeta, em toda a sua obra, vale-se de paradoxos aparentes para revelar quão paradoxal mesmo costuma ser a visão aceita de mundo.

"Nunca fui um bom camarada"

Em São Paulo, na terça-feira passada, o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger conversou com o editor de VEJA Jerônimo Teixeira.

Por que o senhor tem chamado os terroristas islâmicos de "perdedores radicais"?
Perdedor radical é aquele tipo inconformado e violento que, por exemplo, parte para uma matança desenfreada no escritório do qual foi demitido. Quase sempre um solitário, ele nutre uma ilusão de superioridade quando encontra abrigo numa ideologia coletiva. O islamismo – a versão ideologizada da religião – enquadra-se nisso. Alimenta o ressentimento pelo declínio da civilização árabe, sempre atribuído a um culpado externo. E tem um forte caráter autodestrutivo.

O ano que o senhor passou em Cuba foi decisivo para o rompimento com o comunismo?
Mesmo no auge de 1968, nunca fui um camarada ideal. Cresci sob a ditadura nazista, e isso me tornou um cético. Mas Cuba foi, sim, a gota-d'água. O país era um mito para a esquerda. Vivendo lá, descobri que era só uma contradição bizarra: um stalinismo tropical.

O senhor já foi muito crítico do clima político alemão. Como está a situação hoje?
Não estou mais obcecado pelo passado nazista, com o "problema alemão". Hoje somos uma sociedade burguesa comum, com os mesmos problemas dos franceses ou escandinavos. Ficamos normais e aborrecidos.

A polêmica de 2006 sobre o envolvimento do escritor Günter Grass com o nazismo não mostra que o "problema alemão" segue vivo?
As revelações sobre o passado de Grass só foram constrangedoras porque ele se erigiu em "consciência da pátria", papel que não tem mais autoridade para exercer. E temos de dar um desconto: Grass não foi protegido pelo ambiente familiar, como eu fui. Meu pai considerava os nazistas uma ralé.

Seu interesse pelo general Hammerstein, que também tinha desprezo aristocrático pelos nazistas, tem algo a ver com seu pai?
Isso provavelmente é verdadeiro. Meu pai também era um obstinado.



Arquivo do blog