VEJA
O melhor cérebro da Europa
Hans Magnus Enzensberger, poeta e ensaísta alemão, é um exemplo raro de intelectual que examina os fatos antes de opinar
Nelson Ascher
Foto Alexandre Schneider |
CÉTICO EM TRÂNSITO |
VEJA TAMBÉM Trecho dO LIVRO
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Hoje o maior poeta europeu e também o melhor ensaísta do continente, o alemão Hans Magnus Enzensberger esteve na semana passada em São Paulo para conferências no Instituto Goethe e para o lançamento de um livro,Hammerstein ou a Obstinação (tradução de Samuel Titan Jr.; Companhia das Letras; 344 páginas; 53 reais). Sentiu-se mal no sábado 13, e chegou a ser internado para exames na UTI do Hospital Sírio-Libanês, onde se constatou que ele sofrera um leve AVC. Recebeu alta no mesmo dia – e no domingo já andava pela Avenida Paulista, tirando fotos da Parada Gay. "Berlim também tem uma parada gay, mas ninguém supera o Brasil em exuberância", divertiu-se. A disposição para, aos 79 anos, saltar de um leito de hospital para um evento de rua é muito própria do estilo do poeta de O Naufrágio do Titanic. Ao contrário do que acontece com os escritores em geral que, quando debatem o mundo à sua volta, supõem que a "criatividade" substitui a observação e acabam por produzir toscas variações sobre fórmulas sintetizadas por outros, o autor se debruça sobre cada assunto com a dedicação do especialista. Já o que o distingue dos especialistas é tanto a variedade de questões às quais sua curiosidade o conduz, como o estilo claro, elegante e sempre livre de jargão com que escreve.
Enzensberger já era influente no começo dos anos 60, proclamado um sucessor teórico do filósofo Theodor Adorno e poético do dramaturgo Bertolt Brecht, ambos marxistas. Mesmo então, sua aplicação do marxismo a tópicos ainda mal explorados – meios de comunicação, ecologia, terrorismo, turismo, vanguarda – era mais refinada do que as demais. Malgrado o envelhecimento daquela terminologia, suas análises e conclusões continuam surpreendentemente atiladas. No entretempo, o poeta foi gradualmente revendo suas posições ideológicas, políticas e culturais até chegar à crítica dura da esquerda e seus dogmas. Não se tratava de ruptura súbita e ruidosa: era, antes, resultado da observação meticulosa, pois, se os intelectuais sedentários defendiam (ou atacavam) lugares, governos e sistemas que (graças a outros intelectuais) conheciam somente de segunda ou terceira mão, ele sempre fez questão de visitá-los pessoalmente. Chegou a viver em Cuba, no fim dos anos 60 – e a experiência do dia a dia na ilha de Fidel Castro foi decisiva para sua desilusão com o socialismo.
Sem que se confundam, há contiguidade entre sua prosa e poesia, uma vez que, mesmo num texto de caráter histórico ou biográfico, o autor utiliza procedimentos típicos da literatura (colagens, estranhamento, diálogos imaginários), e não raro discute logicamente questões concretas em seus versos. Um dos fios que costuram o conjunto, dando-lhe coerência, é sua abordagem. Enzensberger, na medida do possível, prefere que os fatos expostos e justapostos falem sozinhos. Sua opinião, raramente explicitada, antecede a escrita, transparecendo na seleção e na ordem dada ao material.
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OPOSIÇÃO CONSERVADORA |
Hammerstein é um exemplo acabado de como o ensaísta opera. O livro, uma biografia que, embora não romanceada, lança mão de recursos ficcionais, examina a vida e a carreira de um general alemão entre o começo do século XX e meados da II Guerra Mundial. Kurt von Hammerstein-Equord (1878-1943), membro da antiga aristocracia militar germânica, teve papel de relevo, durante o entreguerras, na República de Weimar, assistiu contrafeito à ascensão de Adolf Hitler e, sem chegar a combatê-lo abertamente, mostrou-se avesso o bastante ao novo regime para ser posto de lado. Seus filhos, personagens não menos importantes da narrativa, resistiram ativamente ao nazismo: as meninas, desafiando as convenções de seu tempo e classe, ingressaram no Partido Comunista Alemão e namoraram judeus, enquanto dois dos rapazes, arriscando o pescoço, participaram do movimento que tentou, sem sucesso, assassinar o ditador. O pai, que não impediu a prole de seguir seu caminho, inspirou-a por meio de uma excentricidade: a teimosia, ou seja, a recusa a seguir cegamente ideias alheias. Enzensberger se deleita ao descrever a oposição ao nazismo vinda não de onde normalmente se esperaria (a intelectualidade, o povo, o proletariado etc.), mas, sim, de um meio conservador quase defunto. O poeta, em toda a sua obra, vale-se de paradoxos aparentes para revelar quão paradoxal mesmo costuma ser a visão aceita de mundo.
"Nunca fui um bom camarada" Em São Paulo, na terça-feira passada, o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger conversou com o editor de VEJA Jerônimo Teixeira. Por que o senhor tem chamado os terroristas islâmicos de "perdedores radicais"? O ano que o senhor passou em Cuba foi decisivo para o rompimento com o comunismo? O senhor já foi muito crítico do clima político alemão. Como está a situação hoje? A polêmica de 2006 sobre o envolvimento do escritor Günter Grass com o nazismo não mostra que o "problema alemão" segue vivo? Seu interesse pelo general Hammerstein, que também tinha desprezo aristocrático pelos nazistas, tem algo a ver com seu pai? |