Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 03, 2009

Todos à travessia Mauro Chaves

Vamos lá, não adianta se fingir de morto. Se a Esperança é a última, vamos carregá-la meio moribunda, mas com muito cuidado, para que chegue ainda respirando do outro lado.

Reforma política? Vamos lá, desde que não nos desrespeitem com disfarces primários, como o de trocar a infidelidade explícita pela janela da traição com data marcada. E desde que se tenha em mente que o troca-troca é tão indecente quanto o mensalão ou os dólares na cueca. Não adianta tentar vesti-lo com a fantasia vistosa da liberdade, ou confundir o puro fisiologismo com a livre opção "doutrinária" - pois nossas legendas nem sabem o que é isso. Mas é possível, sim, tornar o sistema eleitoral mais livre, independente, eficiente, com partidos engajados na disputa pela condução do poder - e não na briga pelas migalhas oferecidas pelos que estão no poder.

Acabar com a reeleição? Tudo bem, mas sem fingimentos teóricos que tentem despistar o tremendo oportunismo. Mais honesto será reconhecer o valor da proposta esperta, que concilia adversários ao resolver disputas internas de cada qual. E é até justo matar, com a arma do casuísmo, o que nasceu pelo fórceps do casuísmo.

Vamos lá, industriais, comerciantes, construtores, banqueiros, produtores rurais, publicitários, comunicadores, autônomos, prestadores de serviço de todo o tipo, cientistas, professores, trabalhadores, não adianta espernear, tem de atravessar, o céu de brigadeiro se tornou repleto de CBs, não dá para voltar nem aterrissar, o que resta é acreditar.

Economia? Ora, aí estão as minas da travessia. Resta apenas fazer as devidas distinções para não confundir mineração com campo minado. Que a crise é um manancial de oportunidades pode ser verdade, se não na realidade, pelo menos nos livros de autoajuda. Então, vamos lá, busquemos as oportunidades, mas sejamos cidadãos civilizados e não furemos a fila da UTI.

E a Segurança? Coragem na travessia, pois sem ela não conseguiremos transmitir segurança aos seus agentes, para que estes se sintam seguros ao nos dar proteção, sem medo de receberem de volta alguma bala que, por eventual distração - e erro de pontaria ou de função -, perderam. Acreditemos que a fé e a sorte nos preservarão de suas boas intenções malsucedidas.

E a Justiça? Deixemos de criticar sua morosidade - pois nem sempre a pressa é justa - e tentemos estender a toda a sociedade, ainda dentro deste milênio, a qualidade de vida de seus agentes. Afinal de contas, quem julga tem de viver muito bem e sem esforço exaustivo, pois é das cabeças refrescadas, e não dos corpos extenuados, que saem as mais equilibradas e criativas sentenças - embora isso não sirva de consolo às famílias das 55 vítimas do Bateau Mouche, que acabaram de passar pela data que lhes fez completar duas décadas sob a dor da impunidade.

Advogados? Concentremo-nos ao máximo em seus discursos para ver se neles encontramos algum indício mínimo do que não seja politicamente correto. Se encontrarmos, poderemos sentir-nos aliviados ao recuperar o direito de cantar velhas músicas de carnaval, do tipo "O teu cabelo não nega" ou "Olha a cabeleira do Zezé".

A Cultura e as Artes? Bem, elas serão o alento da travessia, desde que libertas do cabresto da intermediação de seus vazios parasitas, para se entregarem, voluptuosas, à soltura de seus fazedores.

(Sobre a Música, mas aplicável a todas as Artes, a página 143 do primoroso livro Música, Maestro!, de Júlio Medaglia, nos serve de GPS nessa travessia, quando diz: "O grande público, que via na música um elemento prazeroso e emotivo de entretenimento cultural, sentiu-se pressionado com a frenética enxurrada de ideias vanguardistas e com a obrigação de ter de compreendê-las de imediato, antes mesmo de saborear suas mensagens. Em consequência disso começou, de um lado, a rejeitar a polêmica do novo e até a vaiar artistas e, de outro, a voltar-se para o passado. Até o final do século XIX as pessoas ouviam as músicas que se faziam em seu tempo - Bach, após sua morte, sumiu por completo dos palcos e Mozart apenas ouviu falar em Händel no final de sua vida. A partir do início do século XX, porém, o grande público começou a rejeitar os ousados ?experimentadores? da época e a ?desenterrar? e curtir autores havia muito esquecidos, inclusive os grandes mestres, cujas obras, mais que assimiladas, só lhes traziam prazer, e não ?problemas? intelectuais a resolver.")

Já os arquitetos, talentosos e modestos figurantes de uma só ofuscante vaca sagrada, que abafou a todos, dominou o mundo, mas jamais descobriu sua própria vocação - a de escultor, que estranha quando simples seres humanos buscam funções práticas em suas obras -, têm eles se saído muito bem, especialmente quando assessorados por bons engenheiros civis, na solução de problemas técnicos de construção dos quais não têm a menor noção. Mas, certamente, darão um grande charme à travessia.

O que importa mais considerar é que o rumo é pouco conhecido; a experiência histórica, talvez única; a incerteza, desnorteante - por isso estimulante. Agora todos estão, de fato, no mesmo barco, com a consciência de que ninguém controla o vento, mas todos podem ajudar a ajustar as velas. Como? Em que direção? Eis a questão. Na dúvida, talvez caiba trocar o sonho de consumo pelo de produção e tentar chegar do outro lado melhores e mais fortes, entendendo que está na precariedade, justamente, a grandeza de nossa condição.

Feliz ano-novo.

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