Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 17, 2009

Perfil Paulo Szot

Antes dele, só Carmen Miranda

A globalizada história de Paulo Szot, o paulistano criado
em Ribeirão Pires que queria ser médico em São Paulo,
tentou ser bailarino, carreira de que desistiu depois de
se machucar na Polônia, e interpretou um francês num
musical em Nova York – tornando-se o primeiro brasileiro
a ganhar um Tony, o Oscar da Broadway


André Petry, de Nova York

Gilberto Tadday
RITUAL DIÁRIO Szot, no teatro em que encena South Pacific: todas as noites, a plateia, com 1 041 cadeiras, vem abaixo quando ele sobe neste palco

Ele saltou para fazer um tour en l'air, movimento em que o bailarino rodopia no ar, mas, quando voltou ao chão, caiu de mau jeito e torceu o joelho esquerdo. Já era noite naquele verão de 1989, na velha Cracóvia, e o brasileiro não teve como continuar os ensaios. Desceu do 2º andar do Nowohuckie Centrum Kultury, o Centro de Cultura de Nova Arruda, e foi para casa. Achava que era apenas mais um machucado entre tantos outros. "No balé, a gente se machuca toda hora. Pensei que era só colocar gelo e passaria", relembra. Dois dias depois, como a dor não cessasse, foi ao ortopedista. No consultório, ouviu o diagnóstico que mudaria sua vida: ou parava de dançar ou corria o risco de ficar paralítico. Estava sepultado o sonho de Paulo Szot, então com 20 anos, de um dia, quem sabe, atingir as glórias de um Bujones, um Nureyev, um Baryshnikov, bailarinos que tanto admirava. O balé que esse paulistano criado em Ribeirão Pires praticava havia oito anos estava, definitivamente, expulso de sua vida.

Dois meses depois do diagnóstico que lhe tirou o chão, Szot espantou o abatimento e foi tentar a carreira de cantor. Fez uma audição para participar do Slask, um dos grandes grupos folclóricos estatais da antiga Polônia comunista. Ao piano, tocou uma música que sabia perfeitamente: Polonaise em lá menor, do polonês Chopin. Nem precisou terminar. O velhinho Stanislaw Hadyna, fundador do Slask, lhe disse que estava contratado e podia fazer as malas. No dia seguinte, às 7 da manhã, partiriam para Koszecin, vilarejo em torno de um castelo no qual moravam os membros do Slask. Em apenas dois meses, Szot enterrou a carreira de bailarino e começou a de cantor lírico que, dezenove anos mais tarde, faria dele o primeiro brasileiro a ganhar um Tony, o Oscar da Broadway. O prêmio veio por sua interpretação no musical South Pacific, clássico de 1949, no qual Szot faz o protagonista Emile de Becque, um fazendeiro francês que se apaixona por uma enfermeira da Marinha americana numa ilha do Pacífico, durante a II Guerra Mundial. Em cena, Szot está magistral, equilibrando-se com maestria entre sua timidez como ator e sua exuberância como cantor.

Paulo Henrique Szot (pronuncia-se "xót"), 39 anos, é o artista brasileiro que foi mais longe nos Estados Unidos desde Carmen Miranda, cuja biografia, a escrita por Ruy Castro, ele ainda não leu, mas está na sua cabeceira. Ele adora seu sucesso, mas não se deslumbra. Em vez disso, globaliza-se. Trabalhou no Brasil, na Polônia e agora nos Estados Unidos. No fim do ano, estava em Marselha, na França, para onde já fora outras vezes, interpretando Conde Danilo, em A Viúva Alegre. Apresentou-se por toda a Europa e Canadá, em idiomas diferentes. Em Nova York, topou subir num palco da Broadway mesmo tendo de atuar como ator, dizendo falas inteiras – o que lhe dava pânico. Sente-se seguro para cantar em público, mas o medo de falar em público o acompanha desde a infância. Na escola, quando tinha de apresentar um trabalho na frente da turma, Szot inventava uma doença para ficar em casa. Em South Pacific, ele memorizou suas falas, todas em inglês, e atribuiu-lhes sons, transformando-as mentalmente em melodias. E arrasou. Aplaudem-no de pé. Presenteiam-no com ovações em cena aberta. Dão-lhe todos os prêmios. Fora o Tony, Szot arrematou o Drama Desk, como o melhor ator de musical, e os prêmios da crítica, o Outer Critics, e da indústria teatral, o Broadway League. Para completar, seu CD com as canções de South Pacific concorre ao Grammy como o melhor álbum de musical.

Com seu sucesso, Szot virou celebridade. Só às vezes é reconhecido na rua, mas já é aquele tipo de artista cuja presença aumenta o prestígio da festa. Na cerimônia do Tony, em junho passado, Szot vestiu um smoking Calvin Klein, um gracioso presente de Anna Wintour, a editora da Vogue que inspirou o personagem de Meryl Streep em O Diabo Veste Prada. Recebeu o prêmio das mãos de Liza Minnelli, a melhor encarnação viva dos musicais americanos, que lhe sussurrou ao ouvido: "Sua voz é linda". No seu camarim, já recebeu a visita de estrelas de Hollywood e da política americana. "Veio a que fez Alien", diz, referindo-se a Sigourney Weaver. "O 007 também", brinca, falando do ator Pierce Brosnan. Esteve com a atriz Glenn Close, e ficou espantado com o excesso de cabelos brancos do "major Nelson" – o ator Larry Hagman –, cuja mãe, Mary Martin, encenou South Pacific em 1949. Hillary Clinton também esteve lá, com a filha Chelsea, logo depois de perder a candidatura presidencial para Barack Obama. Szot ficou impressionado com o pesado esquema de segurança.

Fotos Lucas Jackson/Reuters, Álbum de Família
VIDA DE ARTISTA Na foto em preto-e-branco, Szot apresentando-se por volta de 1974. No alto, à direita, ele é o do lado da vitrola, na casa da avó em São Paulo, em 1972. Na foto à esquerda, numa apresentação no Slask, na Polônia, em 1994. À direita, em junho passado, ao receber o Tony

O menino Paulo Henrique talvez pudesse ser tudo, menos cantor de ópera. Para começar, tinha horror à ópera. Ou melhor: tinha medo. "Aquelas vozes me assustavam, eram dramáticas demais", recorda. Também não se sentia à vontade no palco. Numa de suas apresentações na infância, com 7 ou 8 anos, tocou violino e caminhou lentamente para o lado, até ficar atrás do piano, escondido da plateia. "Eu tinha muita vergonha." Mas Szot é o caçula de cinco filhos de uma família musical e harmônica – na melodia e no convívio. Seu pai, Kazimierz, polonês de Lwów, foi capturado pelos nazistas e levado à Alemanha, de onde fugiu e tomou um navio pensando que ia para a Argentina, mas acabou no Brasil. Ele adora música. A mãe, Zdislava, também polonesa, coincidentemente viveu uma história idêntica. Levada para a Alemanha, fugiu e, por engano, também aportou no Brasil, onde conheceu o futuro marido. Os dois usam nomes aportuguesados. Kazimierz virou Casimiro. Zdislava virou Dirce. Dirce? "Também nunca entendi por quê", diz Szot.

Na infância, ele e os irmãos participavam do grupo de canto e dança folclórica polonesa formado pelo pai, o Wiosna (primavera, em polonês). Szot vivia escutando música, inclusive do grupo folclórico Slask, do qual se tornaria membro anos mais tarde. No início da adolescência, interessou-se por balé e sapateado e, junto com o irmão Jan, começou a estudar na escola de dança da sua irmã Janina. Tentou o vestibular para medicina, pelo gosto de ver o corpo humano por dentro. Foi reprovado. Em 1987, soube de uma bolsa para estudar polonês numa universidade de Cracóvia. Aos 18 anos, junto com um amigo, embarcou no cargueiro Powstaniec Listopadowy (O Levante de Novembro, em polonês), que transportava minério de ferro, e levou 23 dias para chegar a um porto perto de Gdansk, onde o sindicalista Lech Walesa então agitava as massas contra o regime. Ficou tão assustado com o comunismo polonês que pensou em voltar. A comida era escassa. Havia fila para tudo. Um dia, entrou num supermercado em cujas prateleiras havia só garrafas de vinagre. Mas, morando numa ampla casa com dezenas de outros estudantes, acabou ficando e, com o tempo, adaptou-se. Gostou, sobretudo, de descobrir que podia viver de arte.

Nos cinco anos em que cantou e dançou no Slask, apresentando-se pela Polônia e pela Europa, Szot também estudou técnica vocal, com a professora Janina Kuszyk. Ela dizia que Szot tinha o necessário para ser cantor de ópera: personalidade, físico e voz. "Ela me ensinou muito, me ensinou a ter paciência." De volta ao Brasil aos 26 anos, Szot foi coralista do Teatro Municipal de São Paulo e depois se lançou em carreira-solo, numa estreia barulhenta. Toda a família foi vê-lo. Irmãos, sobrinhos, primos fretaram um ônibus para ir ao teatro. Quando Szot entrou em cena e começou as primeiras notas da ária Largo al Factotum – aquela do "Fígaro, Fígaro, Fígaro" –, a família inteira aplaudiu. "Era tanto aplauso que eu nem ouvia a orquestra. Fiquei com vergonha", diverte-se. Na carreira-solo, Szot não tinha emprego fixo mas não lhe faltava trabalho. Cantou em São Paulo, no Rio, em Porto Alegre. "O público brasileiro adora ópera. Muitos estão indo pela primeira vez, mas a reação é sempre muito bacana."

Divulgação
DEU CERTO Paulo Szot, em cena com
a soprano Kelli O'Hara: logo na estreia, a crítica notou que a química entre os dois é arrebatadora


Convidado para fazer audições nos Estados Unidos, desembarcou em Nova York logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Da primeira audição, no New York City Opera, saiu com um contrato para fazer Carmen, com cachê de 3 000 dólares por récita. Por telefone, comemorou com a família seu primeiro contrato na América. Mas, de novo, pés no chão e nada de deslumbramento. Logo pegou outro contrato, em Detroit, para fazer Don Giovanni, a 5 000 dólares a récita. Em seguida, vieram outro e outro, e de repente Szot já era cantor de ópera nos EUA. Em abril de 2007, seu agente sugeriu que fizesse audição para um musical da Broadway. Era South Pacific. Havia 200 candidatos. Deu Szot. Na estreia do musical, em abril do ano passado, a crítica aplaudiu o conjunto da obra e notou o estrangeiro desconhecido que, no palco, tinha uma química arrebatadora com a soprano Kelli O'Hara, intérprete da enfermeira americana. Nas apresentações seguintes, Szot consolidou o que mostrara desde o início. E consagrou-se. Como cantor de ópera, já tem espetáculos agendados até 2012. Hollywood já lhe fez sondagens. A rede de TV CBS está conversando com seu agente. A ABC convidou-o a participar do famoso seriado Ugly Betty, mas Szot não tinha tempo. Pelo mesmo motivo, também recusou fazer Che Guevara no musical Evita. Em seu lugar, chamaram Ricky Martin.

Paulo Szot tem 1,86 metro de altura, 90 quilos e uma voz de barítono que vai de fá grave a sol agudo. É solteiro, fala baixo e raramente se irrita. É fluente em polonês e inglês e quebra o galho em francês e italiano. Míope, tem 1,75 grau em cada olho. Gasta 300 dólares por mês com remédio contra o refluxo, para evitar a inflamação de suas cordas vocais. Sai pouco de casa. De vez em quando, toma uma taça de vinho. Em casa, não ouve música. Gosta de silêncio. Faz oito apresentações de South Pacific por semana. Na Broadway, um artista do seu quilate ganha de 15 000 a 20 000 dólares semanais. No seu camarim, de número 9, quando toca a campainha sinalizando que o espetáculo vai começar em meia hora, ele dá início à sua transformação. Coloca três microfones pelo corpo. Senta-se diante do espelho e ele mesmo se maquia. Fica levemente bronzeado. "Não dá para ficar com cara de inverno no sul do Pacífico", brinca. A maquiadora apenas pinta suas têmporas de branco porque Emile de Becque, o personagem, é seis anos mais velho que Szot. Por superstição, ele só deixa o camarim quando a orquestra toca um certo trecho da música de introdução. Pisa no palco com o pé direito. Das 1 041 cadeiras, todas sempre ocupadas, a plateia vem abaixo. Aplaudem-no em cena aberta. Todas as noites. Pode-se dizer que valeu a pena torcer o joelho em Cracóvia.

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