Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, dezembro 21, 2007

O jejum do bispo de Barra

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), dando ao governo o sinal verde para retomar as primeiras obras da chamada transposição do Rio São Francisco - a construção de dois canais que levarão parte de suas águas para leitos secos no semi-árido de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará -, baseou-se numa questão de fato e numa questão de direito. Conviria tê-las em mente, tanto mais pelo caráter polêmico desse projeto que remonta ao tempo do Império e pela repercussão da greve de fome de três semanas do bispo de Barra, na Bahia, dom Luiz Flávio Cappio. Em julho último, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, pediu a paralisação dos trabalhos, sob o argumento de que o governo não cumprira as exigências legais para a sua execução. Em outubro, o juiz Antonio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal do DF, concedeu liminar em outro recurso do gênero.

No plano dos fatos, a Corte entendeu, por 6 votos a 3, que nenhum dos requisitos havia sido desrespeitado, estando de acordo com a lei a licença ambiental concedida pelo Ibama para o empreendimento, orçado em mais de R$ 5 bilhões. Os canais deverão capturar uma ínfima parcela da vazão do rio, que varia de 1.850 m³ por segundo a 3.850 m³ por segundo. O volume máximo canalizado, para beneficiar presumíveis 12 milhões de pessoas, não passará de 63 m³ por segundo. Na esfera conceitual, o relator Carlos Alberto Menezes Direito deixou claros os limites da intervenção do Judiciário em matéria de atos governamentais. "Cabe ao Executivo", afirmou, "a exclusiva responsabilidade de avaliação, definição, execução e portanto opção de políticas públicas diante das necessidades sociais da população." Não precisou acrescentar que a legitimidade do Executivo para tanto deriva do mandato recebido por seu titular em eleições livres e limpas.

Obviamente, daí não se deduz que o governo é dono da verdade. Nem significa, no caso concreto, que os adversários dessa obra, que é uma das prioridades da administração Lula com execução atrasadíssima, não devam ou não possam combater a sua decisão de levá-la a cabo. A ordem democrática não apenas legitima o conflito entre atores sociais ou entre eles e o Estado, mas proporciona aos opositores de políticas de governo amplo repertório de oportunidades de expressão, pressão e protesto para demover os governantes de seus intuitos. À luz desses dados singelos da realidade, a greve de fome do bispo de Barra, a segunda, por sinal, representou uma perversão - o termo, infelizmente, é o apropriado - do direito de confrontar o poder público. Primeiro, porque o governo não enfiou o seu projeto goela abaixo da sociedade. Justiça se lhe faça, modificou o esquema original, cercou-se de impressionante massa de pareceres técnicos, não saltou nenhuma etapa dos ritos indispensáveis ao processo decisório e não se furtou ao diálogo.

Em artigo publicado ontem no Globo, o deputado Ciro Gomes, ex-ministro da Integração Regional, lembra que, depois de ter faltado a dois debates para os quais havia sido especialmente convidado, dom Cappio foi a uma audiência com o presidente, na qual ele, como ministro, expôs o projeto por mais de uma hora, com o bispo em silêncio. Concluída a apresentação, dom Cappio teria dito que não estava interessado em discutir a iniciativa. Queria "um plano completo para o semi-árido". Em segundo lugar - e muito mais importante para se entender por que a sua conduta é condenável -, ele tentou acuar o governo, valendo-se de sua condição de religioso. Fosse ele um leigo anônimo, o seu jejum seria relegado pela mídia ao rodapé das bizarrices do dia-a-dia. Mas, sendo um prelado católico, com o sacrifício auto-imposto, abusou da autoridade moral da sua Igreja que o povo brasileiro, em sua maioria católico, reconhece e acata.

O resultado desse abuso foi o espetáculo midiático em que se transformou o seu jejum, digno do clássico do cinema de Billy Wilder, A Montanha dos Sete Abutres.

Deixe-se de lado, por se tratar de assunto da alçada exclusiva dos seus correligionários, a contradição do ato que poderia custar-lhe a vida com os mandamentos do credo que professa. A sua transgressão, insista-se, foi a tentativa de prevalecer sobre o governo de uma nação em que Estado e Igreja são entes distintos.

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