O sonho do geólogo americano Kurt Wise era ser professor de biologia em alguma universidade de ponta nos Estados Unidos. Sua carreira acadêmica vinha numa rota brilhante. Ele foi aluno do célebre paleontólogo Stephen Jay Gould, um dos gigantes da biologia do século XX, e carregava debaixo do braço diplomas das universidades de Chicago e Harvard. Até que um dia, pressionado pela irresistível tensão entre a ciência e os ensinamentos da Bíblia, Kurt Wise tomou uma atitude radical: pegou uma tesoura e saiu cortando todos os trechos da Bíblia que contrariam as descobertas da ciência. Cortou, cortou e cortou, até que não sobrou quase nada do livro sagrado. "Tive de tomar uma decisão entre a evolução e as Escrituras", relembra Wise. Era uma coisa ou outra. Ele acabou renunciando ao sonho de ser professor de biologia e aceitando integralmente a palavra de Deus. "Assim, com grande tristeza, lancei ao fogo todos os meus sonhos e as minhas esperanças na ciência." O caso dramático de Kurt Wise é relatado no livro Deus, um Delírio, do biólogo inglês Richard Dawkins, e coloca uma questão central: é possível conciliar religião e ciência?
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Como a ciência é movida pela dúvida e pela razão, enquanto o motor da fé são a crença e o espírito, os cientistas costumam ser os mais descrentes. Pesquisas indicam que 93% dos membros da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos não aceitam a idéia de um Deus. Há dez anos, a revista Nature informou que 60% dos cientistas não acreditavam em Deus, a mesma porcentagem encontrada em levantamento similar feito em 1916. Entre os mais incrédulos, estão os biólogos. Os matemáticos são os mais crentes. Mesmo vinda de longe, a questão até hoje divide os cientistas. Dawkins, por exemplo, afirma que é inaceitável um cientista ter idéias religiosas, pois o conflito é incontornável. Um geólogo como Kurt Wise sabia, cientificamente, que o planeta tem bilhões e bilhões de anos, mas a Bíblia garante que foi criado por Deus apenas 10.000 anos atrás. O que fazer? Há quem aceite a idéia de que a Bíblia contém imprecisões ou passagens metafóricas, que não devem ser interpretadas literalmente. Mas, nesse caso, cada crente é o hermeneuta de sua própria crença?
São raros, mas existem cientistas devotos. O mais famoso é o biólogo americano Francis Collins, autor de um dos feitos mais notáveis da ciência recente: o mapea-mento do DNA humano. Collins, temente a Deus desde os 27 anos, escreveu A Linguagem de Deus para mostrar que ciência e fé não são incompatíveis, mas complementares. A ciência investiga o natural, a religião investiga o espírito – e uma não responde às dúvidas da outra. Entre os cientistas, muitos rejeitam essa divisão compartimental do saber humano, mas Collins alega que a ciência tem respostas empobrecedoras para indagações primordiais. Por exemplo: por que estamos aqui? Qual é o sentido da vida? Os cientistas ateus não sabem dizer e, em defesa de sua visão atéia, alegam que a ausência de uma explicação natural não exige necessariamente uma explicação sobrenatural. Eles acusam os religiosos de aproveitar a lacuna do conhecimento humano para preenchê-la com o pensamento mágico.
Ciência e fé não foram inimigas escancaradas desde sempre, porque a fé, por séculos, foi mais forte, mais influente e mais poderosa que a ciência. Mas o choque entre ambas tem fundas raízes na história – a começar por Demócrito, que, cinco séculos antes da era cristã, intuiu a existência do átomo em um exercício mental de um vigor espantoso. Diante da afirmação de que tudo era matéria, tudo era átomo, a fé sentiu-se contrariada porque, se tudo é assim, Deus não pode ser imaterial. E, pior, sendo material, é corruptível. Séculos mais tarde, a Igreja Católica, autoridade no Ocidente, entraria em rota de colisão aberta com as mais fantásticas descobertas científicas. Foi contra o heliocentrismo. O Sol não poderia ser o centro do universo, pois esse lugar perfeito, o centro, era da Terra, obra de Deus. Foi contra a datação do mundo, o estudo da anatomia em cadáveres e até se insurgiu contra o número zero, noção central para a evolução da matemática. Desagradou-lhe também o pára-raio, cuja invenção nos dispensou de temer um Deus que nos enviava descargas elétricas punitivas de vez em quando.
É possível que nada tenha sido tão devastador para a crença divina quanto a descoberta de Charles Darwin (1809-1882), que chegou às livrarias inglesas no dia 22 de novembro de 1859, sob o título A Origem das Espécies, com modestos 1 250 exemplares – esgotados rapidamente. Darwin dizia que não havia nada como um criatório divino em algum canto do planeta, de onde Deus sacava de vez em quando uma espécie nova. As espécies evoluíam segundo o princípio da seleção natural. Ruía a idéia de que Deus fez do barro Adão e de sua costela Eva. A hecatombe reverbera até hoje, 150 anos depois, quando criacionistas, em especial nos Estados Unidos, insistem no "desenho inteligente", roupagem nova para o velho criacionismo. A descoberta de Darwin é genial porque, como é próprio das obras-primas, contraria o padrão mental vigente. O homem está habituado a acreditar que, para criar algo, é preciso algo maior. Que só o complexo gera o simples. Ou seja: um homem pode fazer um livro, mas um livro não faz um homem. Darwin mostrou que a simplicidade dá origem à complexidade. Da ameba original veio tudo, o besouro, o coelho, o macaco, o homem. Para ressaltar o repúdio da fé ao darwinismo, o filósofo Michel Onfray, em seu Tratado de Ateologia, indaga, ironicamente: "O papa, primo de um babuíno?".
O avanço da ciência também subverte a idéia religiosa de que a natureza e as espécies carregam o germe da perfeição – como se tivessem sido projetadas para funcionar como uma máquina maravilhosa. É engano. As espécies são imperfeitas, redundantes. Os embriões humanos produzem caudas e guelras nos primórdios, que acabam perdendo na fase fetal tardia. Os biólogos enxergam nesse processo a prova cabal da evolução darwinista e da impropriedade do conceito de criação e seu corolário, a perfeição do desenho divino. A evolução não tende à perfeição. Entre os bichos, a evolução produziu aves que não voam, cobras com pélvis e peixes cegos. Esse processo, em vez de perfeito e retilíneo, é tateante e reincidente em seu incessante trabalho de produção de mutações. O que se atribui à perfeição do desenho é somente o resultado da adaptação às vezes apenas temporária da espécie ao ambiente em que vive. Um exemplo? A ave batizada pelos navegadores portugueses de dodo, corruptela de doido. Por milênios, o dodo viveu nas Ilhas Maurício em relativa segurança, sem predadores e com comida rasteira abundante. Com o passar das eras nesse ambiente, as asas tornaram-se um acessório dispensável e a evolução permitiu que os dodos incapazes de voar sobrevivessem tão bem ou melhor do que os voadores. Logo sobraram apenas dodos incapacitados para o vôo. Resultado: os dodos foram extintos logo depois da chegada dos homens às Ilhas Maurício, em meados do século XVII. Sem asas, essas aves tornaram-se presa fácil para os predadores bípedes humanos.
Mas, apesar do dodo, do átomo, das galáxias, da nanotecnologia e da prova da conjectura de Poincaré, a religião resiste. Por quê? Para uns, a religião surge com a descoberta da finitude, e o peso esmagador de saber-se mortal só pode ser suportado com a muleta do pensamento mágico. Para outros, a religião é um instrumento que o homem criou para adaptar-se ao meio ambiente, que lhe parecia misterioso – como, de outro modo, entender a noite, a chuva, o trovão, a neve? Existe, ainda, a tese de que estamos biologicamente programados para acreditar em coisas que não podemos provar porque, para sobreviver, acreditamos nos perigos e alertas que recebemos de pai e mãe .– ainda que, como crianças, não possamos entender o perigo real de ficar no parapeito da janela do 10º andar. Por fim, a própria teleologia, que nos leva a julgar que tudo existe com alguma finalidade – a nuvem para chover, o sol para aquecer, o mar para nadar –, acaba por predispor a espécie humana à religião. O biólogo americano David Sloan Wilson, da Universidade Binghamton, outro especialista em Darwin, acredita que a religião pode acabar um dia, mas sempre haverá espaço para a fé. Wilson é ateu.
Sua tese tem respaldo em uma pesquisa da década de 70 que estudou 53 pares de gêmeos idênticos e 31 pares de gêmeos não idênticos. A conclusão dos pesquisadores é que a espiritualidade tem raiz genética, mas a opção por determinada liturgia, por um culto específico, pelo hábito de rezar, por freqüentar o templo ou a igreja, por ler a Bíblia ou o Corão é algo culturalmente adquirido. Um dia, o homem saberá ler com precisão os 3 bilhões de letras do DNA humano, nossa carteira de identidade. Certamente, esse conhecimento científico fará com que seja possível evitar um câncer, uma disfunção renal, a tendência à depressão ou a fragilidade dos ossos do tórax. Mas, ainda assim, com toda essa pujança, esse conhecimento imenso, não saberemos como fazer um homem bom ou mau, triste ou feliz. Talvez, da estupenda trajetória percorrida da simplória ameba primeva à potência do cérebro de Albert Einstein (1879-1955), o fundamental seja apenas isso: ser bom, ser feliz.