Avança o projeto de lei que proíbe palavras
estrangeiras. A vítima será o idioma português
Rafael Corrêa e Vanessa Vieira
Se uma lei que proibisse estrangeirismos tivesse sido adotada quando o Brasil se tornou independente, em 1822, não teríamos palavras como futebol e sanduíche, ambas do inglês, sutiã e envelope, vindas do francês |
A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados deu um passo atrás há uma semana. O grupo aprovou por unanimidade o projeto do deputado federal Aldo Rebelo, do Partido Comunista do Brasil, que pretende banir o uso de palavras estrangeiras em anúncios publicitários, meios de comunicação, documentos oficiais, letreiros de lojas e restaurantes. Caso o projeto se torne lei, quem for comprar um mouse para o computador terá de procurar na prateleira por um "rato". Aliás, ao comprar o próprio computador, terá de pedir ao lojista por um "ordenador". Não se poderá mais promover shows, e sim apresentações musicais... e por aí afora. O projeto de Rebelo, que já passou pelo Senado, será agora encaminhado à votação no plenário da Câmara. Caso ele seja aprovado, o Congresso terá deflagrado um retrocesso sem precedentes na história da língua portuguesa. O projeto se baseia na premissa desmiolada de que o português estaria ameaçado pela invasão de termos em inglês usados pela população, principalmente aqueles trazidos pelas novidades tecnológicas.
A percepção de que a língua de Camões estaria perdendo a guerra contra um ataque incessante de estrangeirismos é equivocada e despreza a natureza dos idiomas. A história mostra que todos eles absorvem palavras de outros idiomas para ampliar seu vocabulário. Nesse processo, as línguas evoluem, tornam-se mais ricas, e não o contrário. Além do mais, segundo os especialistas, o projeto de Rebelo é inviável. "O projeto do deputado Rebelo está fadado ao fracasso porque quem manda nos rumos do idioma é a língua falada", diz o filólogo Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras. "Já passou a época em que o estrangeirismo era considerado um invasor. Hoje, sabe-se que ele enriquece o léxico", ele completa. O nacionalismo lingüístico é uma parvoíce, mas volta e meia surge quem o defenda no Brasil. No século XIX, foi a vez de Rui Barbosa. O jurista criticou duramente o escritor português Eça de Queiroz por usar galicismos em seus romances. As palavras que escandalizavam Rui na prosa de Eça eram massacre, detalhe e envelope, as três de origem francesa. "Nessas degradações da palavra, continuará ele a exercer seu ofício de atuar criadoramente sobre o idioma? Não pode ser", escreveu o Águia de Haia. Hoje, as palavras que lhe causavam repulsa estão perfeitamente incorporadas ao português. Como se vê, Aldo Rebelo desconhece a forma como as línguas funcionam.
Historicamente, a multiplicação dos vocábulos nos idiomas se dá nas conquistas de territórios, nas migrações de populações e na exportação de componentes culturais dos países. Na Idade Média, a língua portuguesa contabilizava apenas 15.000 palavras. No século XVI, período marcado pelas grandes navegações, esse número dobrou. No fim do século XIX, os dicionários já registravam 90.000 vocábulos. Hoje, a Academia Brasileira de Letras calcula em 400.000 o total de palavras da língua portuguesa. A origem dos vocábulos incorporados ao português ao longo dos séculos variou conforme o tipo de contato mantido com outros povos. Entre os séculos VIII e XV, o idioma absorveu muitos termos de origem árabe por causa da ocupação moura na Península Ibérica. Durante o Renascimento, a arte e a arquitetura italianas universalizaram várias palavras relacionadas a elas. No século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a França ditava a moda no Ocidente, e várias palavras de origem francesa foram incorporadas ao português.
A tentativa de proteger idiomas das influências estrangeiras é característica de governos autoritários (veja o quadro). "Na Alemanha nazista, o projeto de arianização da cultura alemã teve sua imagem simbólica na queima pública dos livros não alemães", lembra o historiador Wagner Pinheiro Pereira, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação da Universidade de São Paulo. De autoritarismo, Aldo Rebelo entende. Durante muito tempo ele e o PCdoB teceram loas ao comunismo ao estilo albanês, que produziu um dos países mais atrasados da Europa. Nas democracias modernas, a principal tentativa de promover um nacionalismo lingüístico ocorreu na França. Em 1994, o presidente François Mitterrand sancionou a Lei Toubon, que determinava a substituição geral de termos estrangeiros por seus equivalentes em francês. Primeiro, a lei foi ridicularizada pelo povo, que a apelidou de Lei All Good – tradução para o inglês da sonoridade do nome do ministro Toubon, que a propôs. A seguir, vários de seus artigos foram considerados inconstitucionais e hoje vigora apenas uma versão mais branda da lei. E em que Aldo Rebelo se inspirou para criar seu projeto esdrúxulo de cercear o avanço do português? Na Lei Toubon, é claro. O deputado poderia começar sua sanha nacionalista mudando o nome da agremiação em que milita. Afinal, a palavra "comunista" é um imperdoável galicismo.
Com reportagem de Marcio Orsolini