A retratação, obtida por meio dos tribunais, circula na imprensa e na
internet. Nela o blogueiro Paulo Henrique Amorim retira cada uma das
infâmias que assacou contra o jornalista Heraldo Pereira, apresentador
do Jornal Nacional e comentarista político do Jornal da Globo. No seu
blog, entre outras injúrias, Amorim classificou Heraldo como "negro de
alma branca" e escreveu que o jornalista "não conseguiu revelar nenhum
atributo para fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem
humilde".
Confrontar o poder, dizendo verdades inconvenientes às autoridades -
na síntese precisa do intelectual britânico Tony Judt, é essa a
responsabilidade dos indivíduos com acesso aos meios de comunicação.
Amorim sempre fez o avesso exato disso. A adulação, reservada às
autoridades, e a injúria, dirigida aos oposicionistas, são suas
ferramentas de trabalho. Não lhe falta coerência: ao longo das
oscilações da maré da política, do governo João Figueiredo ao governo
Dilma Rousseff, sem exceção, ele invariavelmente derrama elogios aos
ocupantes do Palácio do Planalto e ataca os que estão fora do poder.
Às vésperas da disputa presidencial de 1998, no comando do jornal da
TV Bandeirantes, engajou-se numa estridente campanha de calúnias
contra Lula, que retrucou com um processo judicial e obteve desculpas
da emissora. Há nove anos, desde que Lula recebeu a faixa de Fernando
Henrique Cardoso, o blogueiro consagra seu tempo a cantar-lhe as
glórias, a ofender opositores e a clamar contra o jornalismo
independente. Funciona: a estatal Correios ajuda a financiar o blog
infame.
Amorim não tem importância, a não ser como sintoma de uma época, mas a
natureza de sua injúria racial tem. "Negro de alma branca", uma
expressão antiga, funciona como marca de ferro em brasa na testa do
"traidor da raça". No passado serviu para traçar um círculo de desonra
em torno dos negros que ofereceram seus préstimos interessados ao
proprietário de escravos ou ao representante dos regimes de segregação
racial. Hoje, no contexto das doutrinas racialistas, adquiriu novos
significados e finalidades, que se esgueiram em ruelas sombrias, atrás
da avenida iluminada da resistência contra a opressão. Brincando com a
Justiça, Amorim republica no seu blog um artigo do ativista de
movimentos negros Marcos Rezende que, na prática, repete a injúria
dirigida contra Heraldo. Custa pouco girar os holofotes e escancarar o
cenário que a infâmia almeja conservar oculto.
O líder africânder Daniel Malan, vitorioso nas eleições de 1948,
instituiu o apartheid na África do Sul. Amorim e Rezende certamente
não o classificariam como "branco de alma negra", pois uma "alma
negra" não seria capaz de fazer o mal e, mais obviamente, porque Malan
não traiu a sua "raça". Sob a lógica pervertida do pensamento racial,
eles o designariam como "branco de alma branca", embutindo numa única
expressão sentimentos contraditórios de ódio e admiração. Como fez o
mal, o africânder confirmaria que a cor de sua alma é branca.
Entretanto, como promoveu os interesses de sua própria "raça", ele
figuraria na esfera dos homens respeitáveis. William Du Bois
(1868-1963), "pai fundador" do movimento negro americano, congratulou
Adolf Hitler, um "branco de alma branca", pela promoção do "orgulho
racial" dos arianos.
Confiando numa suposta imunidade propiciada pela cor da pele ou pelo
seu cargo de conselheiro do Ministério da Justiça, Rezende
converteu-se na voz substituta de Amorim. No artigo inquisitorial de
retomada da campanha injuriosa, ele não condena Heraldo por algo que
tenha feito, mas por um dever que não teria cumprido: o jornalista é
qualificado como "um negro da Casa Grande da Rede Globo", que "não
dignifica a sua ancestralidade e origem" pois "nunca fez um comentário
quando a emissora se posiciona contra as cotas". No fim, os dois
linchadores associados estão dizendo que Heraldo carrega um fardo
intelectual derivado da cor de sua pele. Ele estaria obrigado, sob o
tacão da injúria, a subscrever a opinião política de Rezende, que é a
(atual) opinião de Amorim.
O epíteto lançado contra Heraldo é uma ferramenta destinada a policiar
o pensamento, ajustando-o ao dogma da raça e eliminando simbolicamente
os indivíduos "desviantes". O economista Thomas Sowell produziu uma
obra devastadora sobre as políticas contemporâneas de raça. Ward
Connerly, então reitor da Universidade da Califórnia, deflagrou em
1993 uma campanha contra as preferências raciais nas universidades
americanas. José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista,
assinou uma carta pública contra os projetos de leis de cotas raciais
no Brasil. Sowell é um conservador; Connerly, um libertário; Miranda,
um marxista - mas todos rejeitam a ideia de inscrever a raça na lei.
Como tantos outros intelectuais e ativistas, eles já foram tachados de
"negros de alma branca" pela Santa Inquisição dos novos arautos da
raça.
A liberdade humana é a verdadeira vítima dos inquisidores do
racialismo. Mas, e aí se encontra o dado crucial, essa forma de
negação da liberdade opera sob o critério discriminatório da raça, não
segundo a regra do universalismo. Se tivesse a pele branca, Heraldo
conservaria o direito de se pronunciar a favor ou contra as políticas
de preferências raciais - e também o de não opinar sobre o tema. Como,
entretanto, tem a pele negra, Heraldo é detentor de uma gama muito
menor de direitos - efetivamente, entre as três opções, só está
autorizado a abraçar uma delas.
Sob o ponto de vista do racialismo, as pessoas da "raça branca" são
indivíduos livres para pensar, falar e divergir, mas as pessoas da
"raça negra" dispõem apenas da curiosa liberdade de se inclinar,
obedientemente, diante de seus "líderes raciais", os guardiões da
"ancestralidade e origem". Hoje, como nos tempos da segregação oficial
americana ou do apartheid sul-africano, o dogma da raça prejudica
principalmente os negros.